O Marco Civil da Internet e os direitos autorais

Spread the love

Este texto dá sequência à série que está sendo publicada em razão da celebração dos 10 anos da Lei 12.965, de 24 de abril de 2014, conhecida como o Marco Civil da Internet (MCI). O primeiro texto abordou o regime geral de responsabilidade civil subjetiva por conteúdo de terceiro, instituído pelo art. 19 para o amplo espectro de provedores de aplicação de internet.

Duas exceções foram previstas a essa regra geral: a responsabilidade subsidiária dos provedores de aplicação por violação à intimidade e divulgação de conteúdo sexual (pornografia de vingança), no art. 21 do MCI, e a regulamentação específica para os casos envolvendo infração a direitos autorais e conexos, conforme § 2º do art. 19 do MCI, em respeito à liberdade de expressão e demais garantias constitucionais. Este texto abordará a segunda exceção.

A escolha por não regulamentar matérias relativas aos direitos autorais e conexos deu-se em razão da votação em trâmite do PL 5901/2013, que propôs reforma à Lei 9.610/98, conhecida como a Lei de Direitos Autorais (LDA). Ocorre que a reforma da LDA não supriu a lacuna quanto à responsabilidade dos provedores de internet e, passada uma década da promulgação do MCI, o §2º do art. 19 segue sem a prometida regulamentação específica.

O posicionamento dos tribunais

Antes da promulgação do MCI, os tribunais brasileiros já eram desafiados com demandas envolvendo direitos individuais e a internet. As decisões pautavam-se nas regras gerais do direito brasileiro e trabalhos doutrinários, os quais também exploravam casos paradigmáticos de outros países.

Nesse contexto, consolidou-se no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ) o entendimento de que as plataformas digitais seriam responsabilizadas civilmente apenas quando fossem notificadas – ainda que extrajudicialmente – e não retirassem o conteúdo apontado como infringente. Trata-se da lógica de notice and takedown, desenvolvida a partir da Section 230 do Communications and Decency Act americano, de 1996, e da Diretiva Europeia do Comércio Eletrônico, de 2000 e aplicada, por exemplo, no REsp 1.593.249/RJ e no REsp 1.694.405/RJ.

O MCI introduziu uma lógica específica para a responsabilidade civil de provedores de aplicação, mas excepcionou os casos envolvendo infração de direitos autorais (art. 19, § 2º). O art. 31 do MCI esclareceu que “até a entrada em vigor da lei específica prevista no § 2º do art. 19, a responsabilidade do provedor de aplicações de internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, quando se tratar de infração a direitos de autor ou a direitos conexos, continuará a ser disciplinada pela legislação autoral vigente aplicável na data da entrada em vigor desta Lei”. Trata-se da LDA e, especificamente, dos arts. 102 a 110, que dispõem sobre as sanções civis aplicáveis aos casos de violação.

O problema é que a LDA não foi editada com o intuito de resolver infrações praticadas no âmbito digital. As regras sobre contrafação partem da premissa de uma violação direta, por assim dizer, a direitos autorais, o que não reflete o cenário principal de aplicação do art. 19 do MCI, em que os provedores de aplicação são usualmente o meio onde ocorre a contrafação, não o agente responsável.

A decisão proferida pelo STJ no REsp 1.512.647/MG ilustra bem esse cenário. A autora da ação de origem era uma empresa que oferecia cursos jurídicos gravados em CD e DVD e descobriu a comercialização ilegal de seus produtos no “Orkut”, rede social já desativada. A autora solicitou extrajudicialmente a remoção dos vídeos das comunidades do Orkut, mas não forneceu as URLs para identificar o conteúdo infringente, então os vídeos foram mantidos. Na ação, a autora requereu novamente a remoção do conteúdo e a condenação da então provedora do Orkut ao pagamento de indenização.

O STJ entendeu que (i) a estrutura do Orkut não contribuía para a violação dos direitos autorais, pois os usuários que fazem o upload do conteúdo, não a plataforma, (ii) as sanções cíveis previstas nos arts. 102 e 104 da LDA não seriam aplicáveis, pois, a plataforma não atuou de forma fraudulenta e ilícita com o objetivo de obter lucros (apenas hospedou conteúdo de terceiro sobre o qual não realiza controle prévio), e (iii) não houve inércia do Orkut após o recebimento da notificação extrajudicial, pois a autora da ação não especificou as URLs do conteúdo infringente.

Em suma: a plataforma não é responsável, a não ser que fique inerte após ter sido notificada sobre o conteúdo infringente (devidamente identificado com as URLs).

Apesar das diversas decisões apontando que, “no que toca às infrações aos direitos autorais, (…) se aplica o regramento da Lei 9.610/1998”[1], fato é que a LDA não supriu a lacuna do MCI. A jurisprudência solucionou o problema com a sistemática do notice and takedown[2] e, como consequência de eventual inércia da plataforma após a notificação, determinou aplicação das sanções previstas na LDA.

O PL 2370

Na tentativa de resolver a lacuna deixada pelo §2º do art. 19 do MCI, o PL 2370/2019 propõe a adição do capítulo “Da Utilização da Obra na Internet” à LDA. Os arts. 88-A a 88-C dispõem sobre a responsabilidade do provedor de aplicação por obra, fonograma, interpretação, execução ou emissão colocado à disposição do público na internet sem autorização do autor e a remuneração dos autores por utilização desautorizada de seu trabalho.

O art. 88-B do PL, especificamente, impõe aos provedores de aplicação e aos autores um procedimento detalhado de denúncias. No processo de denúncia, tanto o notificante quanto o usuário que publicar o conteúdo devem se responsabilizar pelas informações prestadas (seja para justificar a remoção ou a manutenção do conteúdo). No caso de conteúdos com mais de um autor, o notificante que solicitar a retirada responderá perante os demais autores (§10º, art. 88-B). O PL também prevê a responsabilidade solidária do provedor de aplicação, nos termos do art. 105 da LDA, por danos decorrentes da referida colocação, caso não adote as providências previstas no proposto art. 88-B.

O PL também prevê a possibilidade de os titulares requererem aos provedores de internet que exerçam “atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos na jurisdição nacional” o pagamento de remuneração pelo período em que a obra, o fonograma, a interpretação, a execução ou a emissão permanecer disponível (art. 88-C). A proposta ainda deverá passar por outras comissões no âmbito da Câmara dos Deputados antes de ser votada em plenário. No final de 2023, foi aprovado um requerimento para realização de audiência pública, com a participação de associações e representantes, que ainda não foi realizada.

Em razão disso, a lacuna normativa deixada pelo §2º do art. 19 do MCI persiste. Os esforços doutrinários e jurisprudenciais empreendidos nos últimos anos para supri-la não devem, porém, ser desconsiderados nas discussões futuras sobre eventual regulamentação da responsabilidade civil dos provedores de aplicação com relação à violação de direitos autorais – caso, é claro, a lacuna não persista por outra década. A sistemática do notice and takedown atende uma particularidade relevante: direitos autorais são autoproclamáveis e provedores de aplicação de fato não podem decidir se algo é ou não original, nem investigar se todo conteúdo está devidamente creditado.

Há um motivo para o MCI ter previsto, desde o início, uma ressalva para os direitos autorais na internet: as particularidades associadas ao mercado literário, artístico e fonográfico requerem atenção, para que as responsabilidades previstas na lei possam de fato refletir o contexto em que tais relações se formam e preservar os direitos e deveres inerentes a cada tipo de criação.

[1] Por exemplo, a apelação cível nº 1008407-90.2020.8.26.0320, do TJSP.

[2] Por exemplo, a apelação cível nº 1058217-78.2021.8.26.0100, do TJSP.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *