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Na ordem constitucional brasileira, a imparcialidade do juiz é um dos valores que fundamentam a organização do Poder Judiciário. É uma garantia do jurisdicionado no Estado Democrático de Direito, que deriva dos direitos fundamentais ao julgamento pela autoridade competente (princípio do juiz natural), ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa e à vedação ao julgamento por juiz ou tribunal de exceção.
A imparcialidade do juiz é fundamental na ordem jurídica nacional. Tanto é verdade que o Brasil é signatário do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 16 de dezembro de 1966, no qual ficou estabelecido que toda pessoa terá sempre o direito de ser julgado por Tribunal competente, independente e imparcial. Da mesma maneira, o Pacto de San José da Costa Rica contempla o direito de o jurisdicionado ser julgado por Tribunal e juiz imparcial.
Visando assegurar a imparcialidade do juiz do processo penal, a Lei Federal n. 13.964/2019, que alterou artigos do Código de Processo Penal (CPP), estabeleceu, entre outros pontos, a figura do juiz das garantias. Por esse novo regramento, dois juízes diferentes passam a atuar no procedimento criminal: um durante a fase investigatória (juiz das garantias) – até o recebimento da denúncia (art. 3º-C) – e outro na fase processual (juiz do processo).
Para a norma processual penal aprovada, deve ocorrer o afastamento do juiz que atuará na instrução e julgamento do processo dos elementos produzidos na fase de investigação (juiz das garantias). O objetivo é evitar a contaminação do juiz do processo pelas diligências ocorridas durante a fase preliminar da persecução penal, o que poderia interferir de forma decisiva em seu julgamento, quebrando a necessária imparcialidade.
A norma processual penal que instituiu o juiz de garantias foi questionada na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.298, perante o Supremo Tribunal Federal (STF), o qual, por maioria, declarou a constitucionalidade da norma impugnada. Ou seja, para a Corte Constitucional brasileira é real a possibilidade de contaminação do juiz que entra em contato com a investigação e depois julga o processo criminal. Para osministros, há alta probabilidade de que o juiz que participa do processo investigatório seja contaminado pelas informações recebidas nessa fase, o que pode levá-lo, caso participe do julgamento, a proferir sentença parcial, o que é inconcebível no modelo constitucional brasileiro.
Em que pese a constitucionalidade das normas relativas ao juiz das garantias, o STF negou a sua aplicação para os processos de competência originária dos tribunais. Ou seja, pela decisão dada, os ministros e desembargadores poderão atuar tanto na fase de investigação criminal (juiz de garantias) como na fase processual (juiz do processo), sem que se possa arguir parcialidade dos julgadores.
Infelizmente, consumou-se, pelo STF, uma interpretação discriminatória e infundada: enquanto os juízes singulares são considerados sujeitos à parcialidade(passíveis de contaminação) caso tenham contato com os autos da investigação, os ministros e desembargadores são reputados imunes àquele vício processual. Essa interpretação dada pela Corte Constitucional é incoerente e insustentável. Não há base técnica e/ou jurídica para se fazer essa discriminação entre juízes singulares e os integrantes de Tribunais. É inquestionável que ambos são sujeitos a idênticos processos cognitivos na formação de suas decisões judiciais.
A decisão dada pelo STF que impede a aplicação dos juízes de garantias nos processos de competência originária dos tribunais precisa ser urgentemente modificada. Há uma absurda incoerência. Nessa linha, na eventualidade de o ex-presidente Bolsonaro ser denunciado pela PGR pelos crimes em que foi indiciado pela PF, o ministro Alexandre de Moraes não poderá participar da instrução e do julgamento do processo penal. E o motivo é simples. Como o referido ministro participou da fase de investigação, a sua imparcialidade para atuação na fase de julgamento do processo é plenamente questionável.
O ex-chefe do executivo federal possui o direito fundamental a um julgamento justo e legitimo. E a participação daquele magistrado no julgamento de seu processo, caso venha a ocorrer a denúncia, violará tanto a Constituição Federal como os tratados internacionais em que o Brasil é signatário. Portanto, independente da gravidade dos crimes que são atribuídos ao ex-presidente, é seu direito constitucional inquestionável que o eventual processo criminal seja julgado por juízes imparciais. Caso contrário, o julgamento será injusto e inconstitucional.