O processo estrutural no STF: quando e como encerrá-lo?

Spread the love

Os processos estruturais têm por objeto uma situação de violação massiva e crônica a direitos fundamentais, decorrentes de ações, inações e dificuldades de coordenação entre diferentes atores, geralmente públicos.

A correção de tal situação é complexa, geralmente envolve a reformulação de políticas públicas voltadas à implementação dos direitos violados, a reestruturação de instituições e pode se alongar por muitos anos[1].

Assine a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas no seu email

São exemplos de processos estruturais atualmente em curso no Supremo Tribunal Federal (STF): a ação que trata do estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro, em que se constatou a privação da liberdade de pessoas em condições de espaço, alimentação e saúde profundamente inadequadas entre outros problemas (ADPF 347)[2]; a ação que discute a política de segurança pública do Rio de Janeiro, especialmente a alta letalidade em operações policiais (ADPF 635); o processo sobre a proteção da saúde e dos territórios dos povos indígenas (ADPF 709), no qual emergiu a crise humanitária do Povo Yanomami, gravemente afetado pela desnutrição, malária e pelo funcionamento dos garimpos ilegais; assim como os casos em que se busca enfrentar o desmatamento e as queimadas que vêm destruindo os biomas da Amazônia e do Pantanal (ADPFs 743 e 760), colocando em risco sua vegetação, animais, comunidades e sua função da proteção do clima. Todos esses casos se referem a problemas antigos, complexos e sem uma solução rápida ou imediata.

A experiência de outros países mostra como o encerramento dos processos estruturais pode ser uma questão desafiadora. Há registro de feitos estruturais de Colômbia e Índia que se perpetuaram por mais de uma década na fase de cumprimento da decisão estrutural.

A experiência brasileira não precisa ser assim. O processo estrutural no Brasil pode e deve implicar em uma intervenção efetiva, cirúrgica, que não se perpetue no tempo e que tenha por principal objetivo desbloquear as instâncias políticas, que são as verdadeiras responsáveis pela condução de políticas públicas.

Por que tão longos?

Como já indicado, o processo estrutural tem como objetivo modificar uma realidade problemática e complexa, a fim de possibilitar uma adequada proteção dos direitos fundamentais violados. Para isso, o Judiciário determina que as instituições públicas responsáveis pelo problema apresentem um plano de ação, que especifique o que será feito para alterar tal realidade, indicando metas, indicadores de avaliação, matriz de responsabilidade e recursos que serão utilizados.

Com a homologação do plano pelo Judiciário, inicia-se a fase de implementação gradual das suas medidas e de seu monitoramento. Em tais condições, se o surgimento de um problema estrutural não é repentino, tampouco será a sua solução. É preciso uma atuação conjunta de diferentes órgãos para enfrentar o problema. Novas estratégias de coordenação entre autoridades se estabelecem. Algumas soluções produzem melhores resultados do que outras. É natural que algumas medidas demandem ajustes e que outras encontrem resistências à sua concretização.

Por isso, o Judiciário retém a jurisdição e acompanha a implementação do plano por certo período, proferindo decisões complementares quando necessário. Essas decisões mensuram resultados, apoiam seu aperfeiçoamento e desbloqueiam resistências institucionais para a solução do problema. Trata-se de problemas antigos, intrincados, que envolvem múltiplos atores e demandam uma mudança de cultura.

De modo geral, a reforma estrutural é gradual e exige correções de rumos e mudança de paradigmas. É por isso que essa fase inicia sem um período certo de duração e é também por isso que tende a alongar-se. Mas não precisa ser assim.

Quando encerrá-los?

Em primeiro lugar, devem-se nivelar as expectativas sobre os resultados esperados dos casos estruturais. Em tais casos, não se pretende, pela via judicial, alcançar um estado ideal de coisas, em que os direitos de todos os envolvidos têm sua máxima efetividade assegurada.[3] Essa seria a situação de plena efetividade da política pública voltada à realização de tais direitos, a ser conduzida pelas autoridades administrativas. Essa não é a missão do Poder Judiciário no processo.

Não devemos confundir a finalidade do processo estrutural, com a finalidade da política pública. A função do processo estrutural é reconhecer a existência de um problema estrutural, fazer as partes dialogarem de modo a planejarem conjuntamente uma resposta para o problema e assegurar o início da implementação da solução. Em casos estruturais, o Judiciário busca uma retomada da operação funcional e dialógica das diferentes autoridades públicas envolvidas no problema, a fim de que elas progressivamente superem a situação de violação de direitos.

Uma vez restabelecido o diálogo, o plano de ação e consolidada sua implementação, está cumprida a missão do processo estrutural. A partir de então, cabe às autoridades administrativas aperfeiçoarem continuamente a nova política pública, de modo a que possa se aproximar de um estado ideal de atendimento aos direitos. Alcançar tal estado ideal é missão do Poder Executivo.

Se utilizássemos uma metáfora da medicina, poderíamos dizer que o objetivo do processo estrutural não é curar totalmente o paciente, mas retirá-lo da UTI. Ao voltar para o quarto, ainda que não esteja totalmente recuperado, estará em condições de progredir na melhora de sua condição e, ao longo do tempo, reestabelecer-se complementarmente.

Nesse sentido, a intervenção judicial deve fortalecer as instituições responsáveis pela solução do problema, para que, após findo o processo, possam seguir enfrentando antigos ou novos problemas relacionados ao tema sem que novas intervenções judiciais sejam necessárias.

Consideramos que existem três alternativas principais para identificar o momento de encerrar o processo estrutural. A primeira opção é que a as instituições públicas rés identifiquem, em seu plano de ação, metas prioritárias a serem atendidas de modo a que se possa decretar o fim do monitoramento judicial.

De fato, na versão final do anteprojeto de lei sobre processos estruturais, elaborado pela Comissão de Juristas do Senado Federal, há dois dispositivos que indicam a importância dos indicadores de encerramento. Conforme o art. 9º, §3º, VIII, o plano de ação deve determinar prazos, parâmetros ou indicadores que definirão a extinção do processo.

Além disso, o art. 11 dispõe que o monitoramento judicial da implementação do plano de ação será encerrado, com a extinção do processo, quando demonstrada a adoção das medidas necessárias à proteção progressiva e concreta dos direitos violados, na forma de que trata o art. 9º, § 3°, inciso VIII.

Na prática atual, os planos apresentados indicam diversas metas a serem alcançadas em curto, médio e longo prazo. Porém, o órgão público não costuma fixar quais metas são prioritárias e indispensáveis para que a instituição seja considerada como reestruturada.

Uma indicação expressa dessas metas, além de preservar as competências administrativas do Executivo, confere maior previsibilidade ao processo estrutural e diminui o ônus do Judiciário, que não precisará elencar arbitrariamente todos os indicadores que a serem atendidos para que a ação seja encerrada.

Caso o próprio órgão público não indique as metas prioritárias, o Judiciário pode utilizar como referência indicadores existentes em programas e atos normativos já editados pelo Executivo e que estabelecem padrões mínimos a serem atendidos na efetivação do direito fundamental em questão.

Além disso, há uma terceira alternativa: utilizar a análise técnica de órgãos de monitoramento, caso já tenham identificado as falhas estruturais na instituição ré e os principais pontos que devem ser aprimorados. Isso ocorreu na ADPF 709, em que o relatório do Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (CMAP) avaliou o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS), estabelecendo sugestões para o seu aprimoramento.

Como realizar uma transição adequada?

Não basta que o processo estrutural acabe. É importante que seu encerramento ocorra de forma gradual e cuidadosa. Um fim abrupto ou precipitado do monitoramento pode colocar em risco os avanços obtidos. Como fazê-lo então?

Em processos estruturais, é comum que órgãos técnicos de monitoramento, como os Tribunais de Contas e as Controladorias-Gerais, auxiliem o Judiciário no acompanhamento ao plano. O suporte técnico também pode ser feito por órgãos não-governamentais, universidades públicas e outras entidades técnicas. Na ação estrutural sobre saúde indígena (ADPF 709), por exemplo, a Controladoria-Geral da União tem atuado de forma relevante para monitorar o plano de reestruturação SasiSUS, apresentando relatório semestrais e sugerindo complementações.

O próprio anteprojeto de lei sobre processos estruturais também prevê essa possibilidade. Conforme o art. 8º, VI, o juiz poderá designar perito, consultor ou entidade que possa contribuir com o esclarecimento das questões técnicas, científicas ou financeiras envolvidas no conflito, bem como com o desenvolvimento das atividades de participação social.

Ao final do processo, esses órgãos ou entidades técnicas podem ser indicadas como parceiras para seguir no acompanhamento da reforma estrutural. Como transição, a CGU poderia, mediante decisão judicial, seguir auxiliando na reestruturação do SasiSUS, dando o suporte técnico necessário e produzindo relatórios que publicizem os avanços e dificuldades encontrados. Essa fase seria um meio termo entre monitoramento judicial e total autonomia do órgão que foi reestruturado. Em vez de um final abrupto, há uma retomada gradual da autonomia, a fim de garantir os avanços obtidos.

O STF tem, ainda, se utilizado de técnicas dialógicas para complementar o monitoramento e, eventualmente, identificar a possibilidade de encerramento do processo. Audiências de contextualização para alinhar as expectativas dos envolvidos quanto ao cumprimento das decisões estruturais e revelar o estágio de atendimento das determinações e suas dificuldades trazem informações importantes e previsibilidade sobre o que falta para a finalização do processo[4].

Conclusão

Diante do exposto, pode-se afirmar que os processos estruturais têm o objetivo de sanar violações massivas a direitos fundamentais, em situações de grave descoordenação entre os vários atores que podem contribuir para resolver o problema, geralmente autoridades públicas. A solução da questão pode passar pela reformulação das políticas públicas relacionadas à implementação de tais direitos.

No entanto, a missão desempenhada pelo Judiciário nos processos estruturais não se confunde com o papel das autoridades administrativas na formulação e implementação das políticas públicas. A função do Judiciário é restabelecer o diálogo, o planejamento e a funcionalidade da atuação de tais autoridades. A função das autoridades é dialogar, planejar e implementar a solução, promovendo ajustes progressivos à medida que avança a concretização dos direitos. Assim, a atuação do Judiciário deve ser pontual e cirúrgica. A atribuição das autoridades administrativas é que é permanente e que deve se alongar no tempo.

De resto, as sugestões aqui apresentadas não têm qualquer pretensão de encerrar o debate sobre o tema. São os primeiros passos de uma reflexão que até aqui foi pouco desenvolvida pelos pesquisadores da área. Sem dúvidas, toda a discussão sobre as formas de iniciar processos estruturais foi essencial para o seu desenvolvimento no país. Para consolidá-lo, precisamos refletir como encerrá-lo de forma adequada, sem comprometer os avanços obtidos. Não basta saber quando entrar em tais casos. Também precisamos saber quando e como sair.


[1] CASIMIRO, Matheus; FRANÇA, Eduarda Peixoto da Cunha. Decidindo quando intervir: critérios para identificar ações estruturais prioritárias. REI – Revista Estudos Institucionais, v. 10, n. 2, p. 661–688, 2024. p. 681.

[2] Sobre o julgado, Cf. BARROSO, Luís Roberto; MELLO, Patrícia Perrone Campos. O estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro. In: BALAZEIRO, Alberto Bastos; ROCHA, Afonso de Paula Pinheiro; VEIGA, Guilherme (Org.). Novos horizontes do processo estrutural. Londrina: Thoth, 2024. p. 35-68

[3] CASIMIRO, Matheus. Processo estrutural democrático: participação, publicidade e justificação. Belo Horizonte: Fórum, 2024. p. 328.

[4] NAVARRO, Trícia. Audiência de contextualização: um novo formato de diálogo processual. JOTA. 27/08/2024. Disponível em: Audiência de contextualização: um novo formato de diálogo processual.  Acesso em: 18 nov 2024.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *