O projeto de regime específico de tributação das operações com imóveis

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A Emenda Constitucional 132/2023 implementou a reforma tributária do consumo, substituindo IPI, ICMS, ISS e a contribuição para o PIS e a Cofins por dois novos tributos sobre o valor agregado em cada etapa da cadeia de fornecimento de bens, serviços e direitos: IBS e CBS. Paralelamente ao regime geral dos novos tributos, o constituinte derivado delegou à lei complementar a disciplina do regime específico de tributação das operações com imóveis.

Desde logo, vê-se que o §2º do art. 235 do PLP 68/2024 afasta os serviços de construção de imóveis do regime tributário específico, a despeito da regra do art. 10, inciso II, alínea a, da EC 132, que, para “fins do disposto no inciso II do § 6º do art. 156-A da Constituição Federal”, isto é, para a submissão ao regime tributário específico,  considera “construção” como operação com imóveis.

Insubsistente, portanto, a redação do §2º do art. 235 do PLP 68 tendo em vista a flagrante ofensa ao inciso II do § 6º do art. 156-A da CF, combinado com o art. 10, inciso II, alínea a, da EC 132, que impõem o regime específico também para a construção imobiliária.

As principais especificidades do regime tributário das operações com imóveis referem-se à base de cálculo e às alíquotas do IBS e da CBS. O art. 246 estipula que as alíquotas dos novos tributos incidentes sobre as referidas operações serão reduzidas em 20%. Em relação à base de cálculo, há regras peculiares que adotam o “valor de referência” e que aplicam redutores (“redutor de ajuste” e “redutor social”).

O inciso I do art. 239 fixa a base de cálculo do IBS e da CBS como “o valor de referência ou o valor de alienação do bem imóvel, o que for maior, na hipótese de alienação de bem imóvel” e o art. 240 estatui que o valor de referência “será estabelecido por meio de metodologia específica para estimar o valor de mercado dos imóveis, nos termos do regulamento”, prevendo-se ainda que, havendo discordância quanto ao valor de referência, “caberá ao contribuinte comprovar o correto valor de mercado do bem imóvel, por meio de procedimento específico”.

Não se justifica o tratamento extraordinário e prejudicial dado pelo PLP 68 para a caracterização da base de cálculo dos novos tributos, ao estabelecer a presunção de fraude contra o contribuinte alienante de imóveis. Demais disso, em absoluto desprestígio das novas diretrizes de redução de litigiosidade, de cooperação e presunção de boa-fé do contribuinte, o projeto absorve, para o IBS e a CBS, o conhecido litígio sobre a base de cálculo do ITBI, decidido, em julgamento de recurso repetitivo pelo STJ, que firmou a tese de que o município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do imposto com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente (Tema Repetitivo 1113).

Para as operações com imóveis, deve ser aplicada a sistemática geral do art. 12 do PLP 68 que define o valor da operação como base de cálculo do IBS e da CBS. Adotar-se-ia o valor de mercado somente nas hipóteses do §4º do art. 12: falta do valor da operação, operação sem valor determinado, valor da operação não representado em dinheiro e operação entre partes relacionadas. Ademais, o arbitramento da base de cálculo, ou seja, a adoção de um “valor de referência” estabelecido pela administração tributária legitimar-se-ia apenas nas hipóteses do art. 13 do PLP 68.

Por óbvio, não se descarta a (excepcional) prática de simulação ou fraude nas operações com imóveis, de forma semelhante ao que pode ocorrer em qualquer das outras operações onerosas com bens ou serviços. Entretanto, devem ser observadas as normas gerais previstas nos artigos 12 e 13 do PLP 68, pois estabelecer o valor de referência como regra nas alienações de imóveis consubstancia discriminação afrontosa ao setor imobiliário, impingindo-lhe desarrazoado aumento da base de cálculo dos novos tributos, em induvidosa afronta à sistemática da não cumulatividade e ao princípio da neutralidade tributária.

Ainda em relação à base de cálculo do IBS e da CBS sobre as operações com imóveis, os artigos 241 a 244 disciplinam o “redutor de ajuste”, correspondente ao valor de referência, no caso de imóveis de propriedade do contribuinte em 31 de dezembro de 2026, ao menor valor entre o custo de aquisição do imóvel ou o valor de referência, no caso de imóveis adquiridos a partir de 1º de janeiro de 2027 de alienante não sujeito ao regime regular dos novos tributos, e ao saldo não utilizado do redutor de ajuste, no caso de imóveis adquiridos a partir de 1º de janeiro de 2027 de alienante sujeito do regime regular do IBS e da CBS.

Há previsão também do “redutor social” exclusivamente na alienação de bem imóvel residencial novo realizada por contribuinte regular do IBS e da CBS, mediante dedução do valor de R$ 100 mil por imóvel, até o limite do valor da base de cálculo, após a aplicação do redutor de ajuste. Servirá o redutor social como instrumento de progressividade dos novos tributos, assegurando a menor tributação sobre as operações com imóveis populares.

No PLP 68, não consta, porém, regra de atualização monetária de nenhum dos redutores. Considerando que o redutor de ajuste é vinculado ao respectivo imóvel e apenas pode ser aplicado para reduzir a base de cálculo de operações relativas àquele bem específico, revela-se a provável desvalorização do redutor de ajuste quando transcorrer lapso temporal significativo entre a data de sua constituição e a data da operação com o imóvel correspondente.

A ausência de regra de atualização do redutor social também implica em sua potencial ineficácia depois de alguns anos, o que frustraria a pretendida progressividade do IBS e da CBS sobre as operações com imóveis.

Para a incorporação imobiliária e o parcelamento de solo, o PLP 68 inova ao estabelecer um regime híbrido de caixa e competência para a cobrança do IBS e da CBS, prevendo que os novos tributos incidentes na alienação das unidades imobiliárias “serão devidos em cada pagamento ou no momento em que o pagamento se tornar devido, o que ocorrer primeiro”.

A hibridez do regime de apuração das receitas para fins de cobrança do IBS e da CBS, além de trazer complexidade para os lançamentos contábeis do empreendedor imobiliário, destoa do regime especial tributário do patrimônio de afetação (que remanescerá para o IRPJ e a CSLL, conforme o art. 471 do PLP 68), pelo qual o incorporador imobiliário se submete ao regime de caixa.

Deve-se atentar também para as regras previstas nos parágrafos 2º e 3º do art. 247 do PLP 68. O §2º veda o ressarcimento de eventual saldo credor do IBS e da CBS durante a construção da obra, o que pode repercutir seriamente no fluxo de caixa da incorporadora imobiliária nas etapas do empreendimento em que há descompasso entre as despesas e as receitas. O §3º estipula que o eventual saldo credor será ressarcido apenas depois da conclusão da obra e da emissão do “habite-se”, admitindo-se, opcionalmente, que o contribuinte compense os créditos de IBS e de CBS com débitos relativos a outras operações suas.

Se aprovado, nestes termos, o projeto de lei complementar, e tendo em conta a vedação da transferência de créditos dos novos tributos para terceiros, as incorporações imobiliárias poderão deixar de ser objeto de sociedades de propósito específico (SPE), a fim de que o contribuinte concentre numa mesma pessoa jurídica todas as suas incorporações, compensando, de forma geral, os créditos e débitos de todos os seus empreendimentos e evitando o acúmulo de saldos credores de cada incorporação.

Enfim, muito embora tenha a EC 132 estipulado um regime específico de tributação para as operações com imóveis, verifica-se que a regulamentação prevista no PLP 68 exige importantes ajustes de modo a impedir a complexidade, a litigiosidade e a excessiva onerosidade da tributação do relevante setor imobiliário brasileiro.

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