O STF e o artigo 142

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No ano de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) recebeu uma solicitação do Partido Democrático Trabalhista (PDT) sobre a inconstitucionalidade de interpretações excedentes fixadas no artigo 142 da Constituição Federal, o qual estabelece a tarefa das Forças Armadas. Tal artigo expõe que elas se destinam à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de cada um destes, da lei e da ordem. 

Vale lembrar que este papel das instituições bélicas, com pequenas variações, aparece no artigo 162 da Constituição de 1934: defender a Pátria e garantir os Poderes constitucionais, a ordem e a lei; no artigo 177 da Constituição de 1946: defender a Pátria e garantir os Poderes constitucionais, a lei e a ordem; na Constituição de 1967: defender a Pátria e a garantir os Poderes constituídos, a lei e a ordem; na Emenda Constitucional de 1969: defesa da Pátria e à garantia dos poderes constituídos, da lei e da ordem.

A referida solicitação se baseou em inúmeras justificativas indubitáveis e plenas de convencimento. E frente a elas todos os juízes do STF votaram a favor, ou seja, foi uma decisão unânime, e não poderia ser diferente tendo em conta a solidez e a inquestionabilidade das alegações apresentados. Com efeito, os argumentos por eles expostos se mostraram muito consoantes e eloquentes.

Exponhamos o que disseram: não se observa no arcabouço constitucionalmente previsto qualquer espaço à tese de intervenção militar, tampouco de atuação moderadora das Forças Armadas; não existe, no nosso regime constitucional, um poder militar, o poder é apenas civil, constituído por três ramos ungidos pela soberania popular, direta ou indiretamente, a tais poderes constitucionais, a função militar é subalterna; nunca houve a previsão das Forças Armadas como um dos poderes de Estado e nem como poder moderador; conferir a elas um superpoder careceria de legitimidade democrática.

No âmbito social a repercussão foi extremamente positiva, haja vista as diversas manifestações nos meios de comunicação. Confiramos os discursos difundidos: a Suprema Corte finalmente firma de modo assertivo que a interpretação de que o art. 142 permitiria uma intervenção militar constitucional não encontra guarida na Carta Magna e nem no horizonte dos cânones hermenêuticos da teoria do direito e da constituição; é um entendimento sem questionamento, mostra que o texto constitucional está consolidado e não existe poder moderador no Brasil; o STF consagrou em papel timbrado o que muita gente vem repetindo desde há muito tempo: o artigo 142 da Constituição não permite que quem estiver na Presidência da República decrete intervenção militar.

Essa oportuna e auspiciosa decisão do STF, apesar de bastante tardia, se revela extremamente importante porque deu a inatacável palavra final sobre o entendimento do mencionado artigo após inconcebíveis décadas de silêncio sobre seu significado. E de imediato, ele destrói qualquer imaginável fundamento jurídico da fracassada tentativa de golpe de Estado perpetrada por Bolsonaro e seus patriotas civis e militares. 

Observe-se que o incabível e longevo mutismo da instância mais elevada da justiça brasileira ocorreu, principalmente, por força dos ansiados interesses dos setores dominantes da sociedade, ou seja, de significativas parcelas do empresariado e de parlamentares descomprometidos com o enraizamento, solidez e perenidade do regime democrático. Relembre-se que o macróbio papel das Forças Armadas vem desde o ano de 1934, e ele deve ter servido de sustentáculo legal aos inúmeros exercícios do poder moderador e dos golpes aplicados desde então até os dias mais recentes, pelos cidadãos fardados em parceria com civis iliberais.

Cabe enaltecer a propositura de um dos ministros da corte maior referente à notificação aos fardados. Ele sugeriu o envio oficial da decisão do STF às escolas de formação e aperfeiçoamento de militares. Sem dúvida uma proposta muito relevante porquanto a assunção de concepções e valores por parte dos fardados acontece por meio do processo de socialização e de educação formal. Infelizmente e incompreensivelmente, a proposta não recebeu a maioria dos votos necessários para seguir adiante segundo nota da imprensa.

Outro ministro asseverou em entrevista recente que a decisão tomada pelo STF provocou a ultrapassagem da politização das Forças Armadas. Apesar de não ter revelado a razão dessa fala é admissível supor que a mesma diga respeito à certeza da ocorrência de intensa circulação dela entre os fardados acompanhada de comentários e debates. Certamente também será objeto de análise nas aulas de Direito Constitucional nos cursos das Academias.

Convém dizer que esta fala se mostra precipitada e pretensiosa, mesmo porque não vem acompanhada dos imprescindíveis embasamentos. Aparenta carregar, portanto, um forte componente afetivo, haja vista que foi exposta em meio ao calor dos acontecimentos. Esta crença na referida ultrapassagem é semelhante àquela que circula entre os senadores a respeito da denominada PEC da elegibilidade dos militares. Eles, de modo singelo, acreditam que o impedimento da volta do candidato militar à caserna tenha o poder de despolitizar as instituições bélicas. Tal crença não leva em conta os efetivos mecanismos de politização encontráveis no processo de socialização, na educação formal, incluso o currículo oculto e nas trocas de mensagens nas redes sociais.

É preciso alertar para o fato de que a repercussão positiva no âmbito social, junto a essa concepção de ultrapassagem, mais a esperançosa crença na referida PEC, não sejam transformadas no juízo de que a futura possibilidade do uso do poder moderador e da aplicação de golpes pelos fardados foi totalmente eliminada. 

Importa destacar que o artigo 142 continua intacto no texto constitucional. Embora um robusto entendimento sobre ele tenha sido fixado pelos titulares da corte maior tal entendimento se encontra fora da Carta Magna. E apesar de estar legalmente estabelecido que cabe ao STF fazer a exegese da Constituição circulam posturas alternativas a esse respeito.

Com efeito, existem estudiosos da área do direito que afirmam a presença de uma grande variedade de meios hermenêuticos disponíveis os quais agregam princípios diversificados. Há, também, intérpretes que escolhem tais meios muito mais com base em intuições, afetos e experiência pessoal do que em fundamentos racionais. Outrossim, há juristas que apontam a relevância dessa diversidade porque a mesma se inclinaria a auxiliar a tarefa de aplicação do direito. Entretanto, tende ser majoritária e mais sólida a postura amparada no paradigma relativo ao arcabouço do Estado Democrático a qual foi adotada pelos juízes da suprema corte. 

Se o mencionado artigo continua inviolado e se a profusão de critérios elucidativos é aceitável nada impede que no futuro apareça alguém portador de concepções iliberais que postule sua reinterpretação. Note-se que no âmbito da sociedade existe a figura do intelectual orgânico encarregado de elaborar narrativas e propostas que interessam a grupos e classes sociais. Políticos autoritários de novas épocas podem vir a contar com o apoio de algum deles para a exposição de um entendimento compatível.

Veja-se que na recente tentativa de golpe de Estado alguns desses intelectuais elaboraram a alcunhada minuta do golpe. Além disso, um renomado jurista brasileiro, veio a público para apresentar uma espampanante, insustentável e antidemocrática proposta referente à legalidade do papel moderador exercível pelos fardados a qual foi utilizada pelos golpistas. 

Considerando o caráter abstrato e genérico do artigo em questão bem como a tarefa de evitar o possível aparecimento de futuras e perigosas versões seria necessário incluir a decisão tomada no texto constitucional. Observe-se que na Carta Magna de Portugal, no tópico relativo às instituições bélicas encontra-se escrito a seguinte e séria advertência aos fardados: ”as Forças Armadas estão ao serviço do povo português, são rigorosamente apartidárias e os seus elementos não podem aproveitar-se da sua arma, do seu posto ou da sua função para qualquer intervenção política”.

O abstracionismo e a generalidade também não aparecem na Constituição da Alemanha haja vista que um de seus artigos especifica objetivamente as atribuições dos servidores de uniforme: ”o Governo Federal pode recorrer à Forças Armadas para o apoio da Polícia e da Polícia Federal de Proteção das Fronteiras para proteger objetos civis, combater rebeldes organizados e armados militarmente e para executar tarefas de regulamentação do tráfego”.  

Quanto a esse caráter cabe ressaltar que se apresenta como um exemplo típico das denominadas lacunas da lei. Com efeito, os vazios e brancos das legislações não decorrem apenas de possíveis descuidos ou cegueira provocados pelo caráter ideológico de ocultação que faz parte do Direito. É intencional e atende ao interesse de incluir brechas para ir além da própria lei, para possibilitar o cometimento de ilegalidade com aparência de legalidade.

Cabe lembrar que a redação desse artigo da forma como se encontra foi uma suspeitosa exigência dos militares na constituinte. E ele permitiu a Bolsonaro pleitear o uso do poder moderador pelos servidores de uniforme no decorrer de suas contendas com o Judiciário e justificar a aplicação da tentativa de um golpe. 

Outrossim, é preciso redimensionar a importância da previsão constitucional pertinente à tarefa destinada aos integrantes da caserna. Embora os militares praticantes do intervencionismo na política possuam a tendência de buscarem na lei a sustentação para seus atos, são outros os fatores mais relevantes. Eles já foram identificados e se encontram nas diversas teorias relativas à ingerência dos fardados na esfera governamental classificadas em dois blocos, quais sejam, as que apontam o protagonismo das peculiaridades das instituições castrenses e as que indicam o papel ativo de elementos encontráveis no âmbito externo a elas. Destaque-se que a carência de controles democráticos das Forças Armadas, tal como as nossas, se mostra como a grande facilitadora de atos golpistas.

Derradeiramente vale realçar que os eminentes ministros do STF fizeram um relevante, ágil e efetivo trabalho de exegese em cumprimento às obrigações que lhes cabem. Entretanto, valendo-se do prestígio e da capacidade persuasiva que possuem, deveriam, a título de contributo, apresentar duas sugestões pertinentes. Uma delas diz respeito à retirada e substituição do anacrônico, inservível e temerário artigo por outro a ser elaborado por um grupo de reconhecidos estudiosos civis e militares de Forças Armadas.

Observe-se que a própria argumentação e análise que apresentaram sustentam, de forma notória e consoante a proposta de comutação. A outra se refere ao estabelecimento do controle democrático das instituições bélicas por meio de mecanismos já postos em prática, desde há muito tempo, em países regidos pela democracia, porquanto eles são muito mais efetivos para minimizar a politização dos quartéis e obstaculizar o surgimento de tentativas violadoras do regime democrático por parte dos servidores de uniforme.

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