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Recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) divulgou à sociedade o conjunto de normas que irá pautar a atuação do tribunal nas eleições 2024. Os temas abordados são diversos, e incluem o calendário eleitoral, registro de candidaturas, destinação de recursos do fundo eleitoral e, naquilo que interessa para a presente opinião, a divulgação daquilo que é considerado “propaganda eleitoral” online, hipótese regulada pela Resolução 23.732/2024.
O corpo normativo em referência estabelece deveres aos responsáveis por ambientes que permitem a divulgação de conteúdo por terceiros (redes sociais e serviços de mensageria) que não encontram correspondência em leis brasileiras, especialmente o dever de monitoramento das plataformas para impedir ou diminuir a circulação de fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados (art. 9º-D). A adoção de providências em relação a tais postagens deve ser imediata, sob pena de responsabilização solidária com o produtor do material (art. 9º-E).
Diálogo entre Poder Público e entes privados é necessário
A tutela de direito estatal em redes sociais não alcança patamares razoáveis de efetividade e tempestividade em muitas ocasiões. No âmbito da efetividade, é possível que pautas exclusivamente vinculadas à remoção de postagens, com indicação de todos os endereços virtuais específicos em que localizadas, não sejam capazes de excluir, de fato, as manifestações infringentes do ambiente virtual.
No âmbito da tempestividade, há uma nítida incompatibilidade entre (a) a velocidade da disseminação de conteúdo danoso online (b) e tempo necessário para redação de arrazoados (petição inicial, decisão que outorga tutela de urgência) e comunicação de ordens judiciais sob a égide da legislação processual em vigor.
Assim, é pertinente, dentro de múltiplos interessados (multiple stakeholders), o estabelecimento de diálogo para influência e aprimoramento das atividades desenvolvidas pelas plataformas, tudo dentro da lógica da prevalência da liberdade de expressão e da consciência de que a internet é um fenômeno global, impactado por diferentes corpos normativos estatais.
De acordo com dados publicamente divulgados pela Meta, 676 milhões de perfis falsos foram removidos do Facebook somente durante o segundo trimestre de 2023. Desse montante, 98,8% dos perfis foram encontrados por colaboradores e ferramentas criadas pela rede social, ou seja, sem qualquer iniciativa da pessoa natural ou jurídica eventualmente prejudicada.
Também durante o segundo trimestre de 2023, o Facebook adotou medidas em relação a 17,5 milhões de postagens que violaram as diretrizes de combate ao discurso de ódio da rede, sendo que mais de 89% das manifestações foram localizadas pela própria empresa com o auxílio da tecnologia. Por outra perspectiva, e apenas para que se tenha uma ideia da diferença quantitativa entre as operações, o relatório de transparência da Meta reporta que empresa removeu, durante todo o primeiro semestre de 2022, 1280 materiais em decorrência de ordens judiciais advindas do judiciário brasileiro.
O que se quer demonstrar a partir dos números acima expostos é que a moderação de conteúdo online é uma atividade necessária para manutenção das redes sociais. Mais do que isso, é uma realidade que, em certa medida, possibilita a própria continuidade do Poder Judiciário como atualmente disposto, porque é inimaginável que muitos milhões de pedidos de adoção de medidas nas redes sociais sejam apresentados e devidamente respondidos por juízes todos os meses.
O risco da ampliação de deveres
E mais. É de suma importância destacar que as definições do TSE não passaram por um filtro democrático, especialmente porque não se assemelham aos deveres previstos pelo Marco Civil da Internet (MCI) naquilo que se refere ao processo para remoção de conteúdos infringentes no ambiente virtual.
De acordo com o art. 19 do MCI, quem deve avaliar eventuais abusos de liberdade de expressão online é o Poder Judiciário, porque são os magistrados aqueles que podem avaliar os fatos e estabelecer um contraponto com o ordenamento jurídico. Em resumo, exercer a jurisdição. A hipótese legal de responsabilidade civil dos provedores é vinculada ao descumprimento das decisões judiciais, não a um potencial erro na atividade de monitoramento da rede e localização de materiais ilícitos de acordo com determinada legislação estatal.
O estabelecimento de uma hipótese objetiva de responsabilidade civil por Resolução retrata um precedente que deve ser analisado com extremo cuidado, até porque, a título meramente exemplificativo, a regra criada pelo TSE é muito mais agressiva que as previsões voltadas a indenizar erros judiciários. Se o Estado (ao menos aparentemente) está delegando a função de monitorar e definir o que é lícito e ilícito na internet (praticamente uma “jurisdição delegada”), não parece razoável que a responsabilização dos provedores seja muito mais severa que aquela direcionada aos agentes públicos.
Regulação da internet exclusivamente pela jurisprudência
As disposições da Resolução do TSE sobre responsabilidade civil das plataformas podem ser um indicativo de como, ao menos parte do Supremo, irá deliberar a respeito da constitucionalidade do citado art. 19 do MCI (Tema de Repercussão Geral 987).
A esse respeito, cumpre registrar que a eventual declaração de inconstitucionalidade da norma abriria espaço para construção de posicionamento exclusivamente jurisprudencial sobre o tema, ocasionando grave violação ao processo democrático que ensejou a edição do MCI e severos riscos para a segurança jurídica, por ausência de previsibilidade em relação às regras aplicáveis aos fatos ocorridos online. Falta tinta para descrever os efeitos deletérios da declaração de inconstitucionalidade do dispositivo.
Riscos do tratamento similar de fatos ocorridos em redes e serviços de mensageria
Outro aspecto de risco jurídico da Resolução em referência é a, ao menos aparente, ausência de diferenciação entre atos praticados em redes sociais e condutas ocorridas em serviços de mensageria, com o estabelecimento de regras específicas para cada hipótese.
A esse respeito, deve-se destacar que uma coisa é a atividade de moderação de conteúdo postado em redes sociais — conscientemente tornado público pelo usuário, portanto. Por sua vez, outra coisa é a fiscalização e controle de mensagens privadas, acessíveis somente a partir da quebra de sigilo telemático dos investigados — hipótese em que necessária, dentre outros requisitos, a expedição de ordem judicial, por conta do disposto no art. 5º, XII, da Constituição da República, e das previsões da Lei 9.296/1996.
Diante disso, verifica-se que a atividade de monitoramento objetivada pela Resolução do TSE não pode ser integral e imediatamente exigível dos responsáveis por serviços de mensageria, sob pena de gravíssima violação ao ordenamento jurídico brasileiro.
Experimentalismo?
“Regras do TSE são ‘test drive’ para regular big techs.” A iniciativa, a bem da verdade, destaca-se como uma abordagem controversa e mal orientada dentro do contexto do experimentalismo regulatório. Tal modalidade de regulação, quando mal executada, pode trazer riscos consideráveis, particularmente em áreas cruciais como liberdade de expressão, privacidade e inovação tecnológica.
Ao implementar essa estratégia sem a devida consideração às nuances e responsabilidades envolvidas, o TSE falha tanto em procedimentos quanto na substância, impondo responsabilidades de maneira inadequada às plataformas digitais e negligenciando os verdadeiros causadores de conteúdos problemáticos na internet.
Contrastando com essa abordagem, a regulação dinâmica e o experimentalismo regulatório oferecem um framework teórico promissor que enfatiza a flexibilidade, adaptabilidade, e um processo contínuo de aprendizado e avaliação, especialmente diante de inovações tecnológicas disruptivas e a crescente desconexão regulatória. Essas abordagens teóricas visam inserir dinamismo e flexibilidade nas práticas regulatórias, utilizando-se de monitoramento constante e avaliações periódicas para adaptar-se às rápidas mudanças do setor tecnológico.
O experimentalismo a la TSE, contudo, carece desses elementos fundamentais. Caracterizado por uma falta de planejamento estratégico, critérios claros, consequencialismo e análise de custo-benefício, ele vai de encontro com o princípio do experimentalismo regulatório que pressupõe caráter temporário e uma abordagem baseada em falibilidade, aprendizado dinâmico e uma verificação acurada de dados.
Conclusão
Não é alarde. Com a aproximação das eleições, emergem preocupações críticas quanto à adequação e eficácia da tomada de controle da internet pelo TSE. A tentativa de impor responsabilidades adicionais a plataformas digitais, sem o crivo democrático e a distinção clara entre os diferentes ambientes virtuais (redes sociais versus serviços de mensageria), destaca-se como um movimento potencialmente perigoso, que pode comprometer direitos fundamentais e a segurança jurídica.
Além disso, a abordagem adotada pelo TSE, que se desvia significativamente dos princípios de regulação dinâmica e experimentalismo regulatório — enfatizando a flexibilidade, adaptabilidade e um ciclo contínuo de aprendizado e avaliação —, sugere uma falta de preparo e consideração pelas complexidades inerentes ao ecossistema digital. Essa estratégia, sem um entendimento profundo das dinâmicas tecnológicas e sociais em jogo, corre o risco de não apenas falhar em seu intento de preservar a integridade do espaço público digital, mas também de inviabilizar o potencial inovador e democrático da internet.
Portanto, urge a necessidade de um diálogo mais inclusivo e ponderado, que englobe todos os stakeholders relevantes, para forjar um caminho regulatório que verdadeiramente respeite a liberdade de expressão, promova a responsabilidade e proteja contra abusos, garantindo assim um ambiente digital justo e seguro para todos.