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O ano é 2024; o tema em pauta é, mais uma vez, a venda irregular de medicamentos em marketplaces. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que esses marketplaces não são obrigados a remover anúncios que violem seus termos e condições, em conformidade com o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14).
Ou seja, a “cooperação” (outrora existente em alguns casos) entre empresas reguladas e marketplaces para a remoção de anúncios irregulares de medicamentos, via notificações extrajudiciais, está sendo enfraquecida.
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Objetivamente, o STJ teria trazido insegurança jurídica ao campo regulatório-sanitário: marketplace, em tese, só teria que remover o conteúdo (anúncio) que viola os termos e condições (e, portanto, a legislação), via decisão judicial ou determinação da Anvisa. Resultados? Aumento de comunicações/denúncias à Anvisa para que, então, a agência determine a remoção; e discussão sobre a responsabilidade do marketplace em “permitir”, ao não remover, anúncio irregular de venda de medicamentos.
No âmbito do REsp 2088236-PR, em que se discute a venda de colchão não certificado pelo Inmetro, o STJ decidiu que o marketplace não é obrigado a remover anúncios supostamente irregulares em cumprimento a notificação extrajudicial, exceto nos casos de: (i) violação aos direitos de autor ou a direitos conexos; e (ii) divulgação de materiais (imagens, vídeos, outros) contendo cenas de nudez ou de atos sexuais sem a devida autorização dos participantes. Tais exceções estão previstas no Marco Civil da Internet. Além disso, o regime de responsabilidade civil dos provedores de aplicações (marketplaces; sites de intermediação) é considerado subjetivo.
Reflexamente, a “eficácia” de notificações extrajudiciais é reduzida. As empresas reguladas geralmente notificavam os marketplaces para retirar os anúncios de vendas irregulares de medicamentos (hipótese expressamente proibida pela RDC 44/09). Em resposta, os marketplaces excluíam os anúncios, na tentativa de afastar irregularidades sanitárias a suas atividades.
No entanto, essa “cooperação” entre empresa regulada e marketplace nem sempre funcionava, levando as empresas a denunciarem a situação à Anvisa. A denúncia resulta na abertura de processo administrativo pela Anvisa, que investiga a situação e, se confirmando a irregularidade, a agência determinaria a remoção do conteúdo irregular.
Com o posicionamento (transitado em julgado) do STJ, a primeira consequência parece ser a de que as denúncias à Anvisa solicitando a remoção de anúncios de venda de medicamentos em marketplaces aumentarão significativamente. Questiona-se, então, a eficácia de tais denúncias, considerando as demandas extras incompatíveis com a capacidade operacional da agência.
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Vale lembrar que cada denúncia resulta em processo administrativo, que a autoridade deve averiguar a procedência para, então, determinar a remoção do conteúdo supostamente irregular. Ainda, não temos ciência da métrica de como é a eficiência da remoção dos conteúdos por marketplaces pós-determinação da Anvisa. Isto é, se é cumprida, em quanto tempo etc.
Aqui, a título de exemplo, se remete ao Acordo de Cooperação Técnica firmado entre Anvisa e Mercado Livre, voltado para auxiliar na remoção de anúncios irregulares de produtos sujeitos à vigilância sanitária. A última notícia que se possui, via questionamento à Anvisa[1], é que o ACT não está mais vigente.
Inclusive, a Anvisa entende que, em tais ACTs, a agência se encarregaria da responsabilidade do provedor de aplicação (marketplace) e sobrecarregaria o trabalho, sem eficiência: “A experiência com as tratativas de investigação e notificação demonstram que houve centenas de reincidências e milhares de notificações sobre comercialização, tanto de medicamentos de venda livre, como aqueles de uso controlado. Essa informação leva-nos a crer que não há mecanismos de controle devidamente implementados por aquele provedor de conteúdo” (trecho do voto 8/2022/SEI/DIRE4/Anvisa; processo 25351.917544/2021-96, 4ª Diretoria, Anvisa). Em resumo e conclusão, a Anvisa entenderia que tais ACTs não são benéficos, cabendo ao marketplace a responsabilidade de manter o conteúdo adequado à legislação.
A segunda consequência diz respeito à responsabilidade civil do marketplace frente a não remoção dos anúncios de venda irregular de produtos sujeitos à vigilância sanitária. Com base no posicionamento do STJ ora discutido, o marketplace teria responsabilidade subjetiva, ou seja, seria necessário comprovar a presença de culpa ou dolo por parte do marketplace ao permitir o comércio irregular desses produtos. Nesse contexto, até que medida a ausência de remoção do anúncio irregular seria entendida como culpa ou dolo do marketplace?
De um lado, a manutenção do conteúdo seria possível tendo em vista o Marco Civil da Internet. De outro lado, haveria infração à legislação sanitária, com destaque ao determinado pela Lei 6.437/77: “Art. 3º – O resultado da infração sanitária é imputável a quem lhe deu causa ou para ela concorreu. § 1º – Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual a infração não teria ocorrido”. O marketplace, ao não remover o anúncio, concorre à infração sanitária?
Em outras palavras, manter o conteúdo irregular de venda de produto sujeito à vigilância sanitária (abarcado outros produtos que não apenas os medicamentos), poderia ser considerado como concorrência à infração sanitária, sujeitando o marketplace a penalidades administrativas sanitárias.
A Anvisa já reconheceu a estrutura da relação entre marketplace e usuários vendedores de mercadorias, entendendo que o marketplace é passível de autuação em razão de anúncios de seus usuários: “Ao conhecer as disposições do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), a responsabilidade pelos anúncios é compartilhada entre provedores de informação (anunciante/autores) e o Mercado Livre, que fornece o armazenamento de dados em servidores, além dos serviços de hospedagem e serviços de pagamento que facilitam e promovem a comercialização dos produtos. O Mercado Livre é passível de autuação por atos de terceiros, atua como veículo de comunicação, sendo essa a fundamentação técnica e legal para a publicação da Resolução – RE 3.211/2019” (trecho do voto 8/2022/SEI/DIRE4/Anvisa; processo 25351.917544/2021-96, 4ª Diretoria, Anvisa).
Em conclusão, os reflexos aparentes da decisão do STJ não são favoráveis ao campo regulatório-sanitário. A limitação de hipóteses para remoção de anúncios irregulares em marketplaces compromete a eficácia da vigilância sobre o comércio de medicamentos e outros produtos sujeitos à vigilância sanitária.
O resultado imediato parece ser a insegurança jurídica e um aumento significativo nas demandas à Anvisa, que não poderão ser absorvidas por sua capacidade operacional atual. Há uma necessidade urgente de adotar medidas regulatórias para resolver a situação, especialmente para regulamentar o comércio de produtos sujeitos à vigilância sanitária em marketplaces. Vem aí um novo capítulo.
[1] Protocolo 2024229917, cuja resposta da Anvisa foi recebida em 3/10/24.