Os desafios de combater a ‘mentira’ eleitoral

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As recentes resoluções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), já aplicáveis às eleições de 2024, trazem exigências relativas à veracidade das informações propagadas por eleitores e pessoas candidatas. Uma dessas exigências é a fidedignidade das informações.

O artigo 9° da Resolução 23.610/19, por exemplo, requer que “a candidata, o candidato, o partido, a federação ou a coligação” tenham verificado a fidedignidade do que divulgam, dispondo que agências de verificação de fatos certificadas pelo TSE são fontes suficientes para essa busca.

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Outra exigência diz respeito à contextualização das informações. Os artigos 9°-C e 9°-D da Resolução 23.610/19 vedam a divulgação de fatos “notoriamente inverídicos ou descontextualizados”, no primeiro caso, e “gravemente descontextualizados”, no segundo.

Essa vedação também se encontra no artigo 2° da Resolução 23.714/22, para os fatos “sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados”. As próprias resoluções oferecem a fundamentação para as proibições: tais informações podem “atin[gir] a integridade do processo eleitoral”, conforme o artigo 2° da Resolução 23.714/22.

É inegável que existam tentativas de afetar o processo eleitoral e indevidamente convencer pessoas eleitoras a partir de informações falsas. No entanto, a jurisprudência de tribunais regionais de direitos humanos coloca limites ao objetivo pretendido pelas resoluções do TSE.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), no caso Tristán Donoso vs. Panamá, lidou com acusações contundentes feitas pelo advogado Tristán Donoso contra uma figura pública, que resultaram em uma condenação por calúnia, na falta de provas de sua veracidade. A Corte notou a diferença entre afirmações de fatos e opiniões: apenas as afirmações de fatos podem ser “verdadeiras” ou “falsas”.

Para a Corte, mesmo que o caso se tratasse da afirmação de fatos, a condenação foi indevida: apesar de não ser possível provar as acusações, Tristán Donoso tinha razões para crer no que dizia. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos também adota a distinção entre fatos e opiniões, como notado no caso Bladet Tromsø e Stemsaas vs. Noruega.

Ambos os tribunais, além disso, têm consolidado entendimento de que figuras públicas devem suportar um grau mais intenso de críticas e de escrutínio público, pela qualidade da função que ocupam; e que expressões sobre assuntos de interesse público precisam estar especialmente protegidas de restrições.

No caso Jerusalém vs. Áustria, o Tribunal Europeu protegeu declarações de uma política austríaca que caracterizou certas organizações como “seitas”. Para o tribunal, a expressão em fóruns de debate público só pode ser restringida em situações excepcionais, e as organizações estariam sujeitas a críticas contundentes – caracterizadas como opiniões – por seu envolvimento em assuntos de interesse público.

Já a Corte Interamericana, no caso Kimel vs. Argentina, afirmou que críticas à pessoas públicas são um mecanismo do controle democrático de suas ações, e que, quanto a assuntos de interesse público, devem estar protegidas também as expressões que “chocam, irritam ou inquietam”.

Se o período eleitoral é o momento de tomar decisões sobre o futuro próximo da Administração Pública, parecem incontestáveis os benefícios de lidar com informações precisas e verdadeiras na tomada de decisões. Não à toa, o Tribunal Europeu (Association Burestop 55 e outros vs. França) e a Corte Interamericana (Claude Reyes vs. Chile) afirmaram a obrigação do Poder Público em fornecer informações ao público, e a fazê-lo com precisão. Da mesma forma, para o Tribunal Europeu, a imprensa possui a responsabilidade de averiguar, ainda que não exaustivamente, a veracidade das informações que divulga (Fressoz e Roire vs. França, § 54).

Mas a questão parece se tornar mais complexa quando se trata da expressão de candidatas e candidatos, cujo discurso é composto precisamente pela discussão de assuntos de interesse público, com o objetivo de angariar votos. Se a atual prefeita afirma que recentes melhorias à cidade são de sua responsabilidade, isso é um fato ou uma opinião? Um candidato de oposição precisa contextualizar o que percebe como uma falha na prestação de serviços, ou isso é uma estratégia retórica da atual gestão? Esses assuntos são, por excelência, de interesse público; a proibição de afirmações  descontextualizadas deve ceder diante da permissão para falas provocativas ou chocantes.

O TSE mostra ter consciência desses conflitos, ao inserir termos como “gravemente descontextualizado” ou “sabidamente inverídico” na definição dos ilícitos. No entanto, essas qualificações são de difícil comprovação, não estando claro qual nível de descontextualização é grave, ou como se deve provar que uma pessoa conhecia a inveracidade das informações.

Uma afirmação como “o prefeito desabasteceu o hospital” é, de certa forma, descontextualizada e inverídica: não leva em conta o contexto de disponibilidade de insumos, e, no mais das vezes, não há um projeto deliberado de desabastecimento. Nem por isso, esta é uma afirmação que deve ser proibida na esfera eleitoral: a candidata expressa, assim, sua indignação com os investimentos realizados pela atual gestão.

Diante dessa ambiguidade, as próprias agências de verificação parceiras do TSE limitam o que está em seu escopo de atuação. A Agência Lupa, por exemplo, diz que “não checa opiniões” e, em regra, “não analisa a intenção de atores públicos”. Já a Aos Fatos afirma em sua política editorial que “a dificuldade de identificar a intencionalidade (…) é um dos desafios da cobertura jornalística”, e que a diferenciação entre o que “desinforma” e o que é inerente à “normalidade institucional” é “um desafio editorial diário”.

Esse cenário também representa um desafio à atuação das plataformas digitais, de quem se exige uma atuação enérgica contra o conteúdo notoriamente inverídico ou gravemente descontextualizado (art. 9°-D, Resolução 23.610). Caso usuários propaguem as informações descontextualizadas com outras palavras – ou em outro contexto –, a caracterização desse conteúdo como ilícito dependeria de uma nova análise pela plataforma.

Como afirmou a Corte de Justiça da União Europeia no caso Eva Glawischnig-Piesczek vs. Facebook Ireland Limited, não devem ser impostas obrigações às plataformas que exijam uma análise independente da legalidade do conteúdo, mais complexa que a simples verificação automática. Assim, a obrigação de remoção imediata de conteúdos ilegais (art. 9°-E, Resolução 23.610) não deve ser interpretada de forma a requerer tal análise.

A dificuldade de definir que tipos de informação devem ser combatidas na internet também se constata na prática internacional a respeito de códigos de conduta na internet. A Comissão Europeia e o Conselho da Europa elaboraram relatórios que se propõem a definir desinformação, enfatizando a importância de se aferir a intenção do autor das publicações em causar danos[1]. Mesmo com as numerosas exceções apontadas por ambos os órgãos, a tarefa de aferir a intenção no caso concreto se mostra especialmente desafiadora.

Não por outra razão, a Alta Corte de Mumbai recentemente derrubou uma normativa que proibia conteúdo enquadrado como “fake, false or misleading”, apontando que a vagueza dessas expressões – que não encontravam maior definição na normativa – atribuía poderes excessivamente amplos à agência encarregada da revisão do conteúdo[2].

Como afirmou a Corte Interamericana em seu Parecer Consultivo 5, de 1985, “[u]m sistema de controle do direito de expressão em nome de uma suposta garantia da correção e veracidade da informação que a sociedade recebe pode ser fonte de grandes abusos e, no fundo, viola[r] o direito à informação da mesma sociedade”.

Assim, o TSE precisa atentar-se, na aplicação das recentes resoluções, para a necessidade de proteção ampliada das expressões no período eleitoral, buscando compatibilizá-la com o louvável, mas enigmático, objetivo de garantir a integridade do processo eleitoral.

[1] Uma breve análise das documentações pode ser conferida no policy paper presente em: https://direitorio.fgv.br/sites/default/files/arquivos/policy-brief-cts-fgv-codigos-de-conduta.pdf.

[2] https://www.livelaw.in/pdf_upload/kunal-kamra-vs-union-of-india-561914.pdf.

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