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Um desastre natural sem precedentes abateu o estado do Rio Grande do Sul e, a bem da verdade, continua a abater, pois as chuvas ainda não cessaram. O número de vidas perdidas, que é o pior, já se sabe, é altíssimo, mas nem sequer pode ser agora minimamente estimado, sobretudo porque são diversas e extensas áreas urbanas, com altíssima intensidade demográfica e que tomam boa parte de algumas das maiores cidades do estado, que estão ainda totalmente submersas.
Há relatos de prefeitos, horrorizados, alertando que algumas de suas cidades foram destruídas e outras mesmo desapareceram. Os efeitos deletérios das águas foram equivalentes ou até mesmo maiores, em escala, do que bombardeios. É um verdadeiro cenário de guerra.
Quanto aos números, superlativos, impressionam. De acordo com a Defesa Civil, até agora calculados – e esses números certamente irão aumentar – são 444 municípios atingidos, isto é, cerca de 90% dos municípios do estado, sendo aproximadamente 2 milhões de pessoas afetadas e mais de 330 mil pessoas desalojadas. Dessas, grande parte perdeu absolutamente tudo, precisarão de um novo recomeço.
Embora ainda não haja como mais precisamente estimar, o governo do estado apresentou análise preliminar que dá conta de que, no mínimo, seriam necessários cerca de R$ 19 bilhões apenas para reestruturar serviços e infraestrutura. Contudo, já se cogita que tal estimativa está muito aquém do que será efetivamente preciso.
O evento mais próximo que poderemos utilizar como espécie de uma proxy para o que está ocorrendo no Rio Grande do Sul talvez seja o desastre ocorrido por conta do furacão Katrina, na Louisiana (EUA), onde foram necessários mais de US$ 120 bilhões para a reconstrução, conforme o relatório Federal Emergency Management Agency. Outro exemplo ilustrativo: a Fundação Renova financiada pelas empresas Vale e BHP colocaram mais de R$ 30 bilhões na região do rio Doce, em uma região muito menor e menos populosa que no RS.
Diante desse quadro tão devastador e em que pese a prioridade absoluta nesse momento seja o salvamento de vidas, o resgate de necessitados e a assistência aos desabrigados (são centenas de abrigos, que estão a necessitar diariamente de voluntários, comida, roupas, produtos de higiene, medicamentos e tudo o mais, situação essa que certamente se estenderá por muitos meses), imprescindível já se começar a pensar também nos próximos passos de reconstrução do estado à luz do pacto federativo. E é justamente sobre isso que esse artigo se propõe a debater, sob as lentes da Análise Econômica do Direito (AED).
Em uma perspectiva de AED, a federação é um contrato; mais precisamente relacional, em razão do qual estados contribuem com a União e essa organiza e coordena o interesse dos estados federados respeitando sua autonomia e redistribuindo a riqueza em benefício do bem comum. Inerente ao federalismo é, portanto, de um lado, o respeito à autonomia dos estados membros da União federal, e, de outro lado, que a União opere de forma a assegurar um certo equilíbrio na federação, em recursos econômicos, via redistribuição fiscal, ou também chamado de federalismo “fiscal”: a União deve arrecadar nos estados com maior nível de renda e capacidade tributária, entregando, através das denominadas Transferências Constitucionais, via Fundo de Participação dos Estados, aos de menor desenvolvimento. Vejamos, então como o Rio Grande do Sul, a quarta economia do país, “financia”, via União, outros estados.
Só no ano de 2021, o estado do Rio Grande do Sul enviou à União mais de US$ 57 bilhões, tendo recebido repasses em torno de R$ 13 bilhões, conforme bem ilustra a figura elaborada pelo site Poder 360.
Em 2022, de forma semelhante, os cofres gaúchos receberam de volta R$ 0,23 para cada R$ 1 pago a título de tributos federais, conforme levantamento realizado pela Gazeta do Povo, a partir do cruzamento de dados sobre pagamentos (compilados pela Receita Federal) e sobre os repasses às unidades da federação (publicados no Portal da Transparência da CGU). O saldo negativo foi de cerca de R$ 79 bilhões. E certamente o fez com muito orgulho de fazer parte do pacto federativo e ser solidário nacionalmente.
Além das transferências da União, por ano, o Rio Grande do Sul paga em torno de R$ 3,5 bilhões, só a título de juros da sua dívida para com a União, que – embora objeto de atual controvérsia inclusive judicial – supera a casa dos R$ 100 bilhões (R$ 104 bilhões, mais precisamente), sendo que grande parte do débito remonta à década de 1990, quanto o estado devia apenas R$ 9,4 bilhões e realizou acordo para parcelamento.
No final de 2023, o montante devido era de R$ 92,8 bilhões, tendo tido crescimento, só no ano passado, de 13%, consequência dos contornos da avença para o parcelamento entre União e Rio Grande do Sul, como, por exemplo, a escolha da Tabela Price como modelo de amortização, considerada mais onerosa ao devedor (objeto de ações judiciais no Supremo Tribunal Federal que sustentam já ter havido o pagamento integral da dívida, caso aplicados adequadamente critérios de correção).
Sorte do Rio Grande do Sul por integrar uma Federação e a ela agora poder recorrer para revisar os pressupostos de redistribuição fiscal nesse momento de crise humanitária e econômica. Será o momento de o Rio Grande do Sul, possivelmente por muitos anos, figurar entre os estados com mais repasse da União Federal, compensando-o do período em que foi contribuidor, dado que figurará entre os mais necessitados. É nesse espírito federativo e pragmático que pensamos este artigo de 10 medidas a serem adotadas pela União Federal em auxílio federativo ao RS.
De início, (i) há de se ressaltar a importância da adoção imediata de medidas com o objetivo de se manter empregos, empresas e sobretudo renda para milhares de pessoas que estão a sofrer diretamente as gravíssimas consequências dessa catástrofe, dentre as quais muitas que sequer terão onde e como retomarem suas atividades laborais, notadamente no curto prazo. Seus postos de trabalho, empresas, sedes e casas foram completamente destruídos, não existem mais.
Nesse sentido, urge que sejam regulamentadas iniciativas por parte do governo federal, a exemplo daquelas tomadas durante a pandemia de Covid-19 e ensejadas no âmbito da Lei 14.473/2022, que converteu a Medida Provisória 1.109, a fim de autorizar o Poder Executivo Federal a dispor acerca da adoção, por empregados e empregadores, de medidas trabalhistas alternativas e sobre o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, para enfrentamento das consequências sociais e econômicas de estado de calamidade pública em âmbito nacional ou em âmbito estadual, distrital ou municipal, reconhecido pelo Executivo. Ilustrativamente e de forma resumida, mediante acordo, poder-se-ia reduzir proporcionalmente a jornada de trabalho ou mesmo suspender os contratos de trabalhos, cabendo ao governo fazer a complementação do salário, na forma da lei, preservando-se, assim, empregos e renda.
Outrossim, (ii) a liberação imediata para saque dos depósitos de FGTS dos trabalhadores, o que já se começou a fazer em algumas cidades do Rio Grande do Sul, mas é preciso que seja feito o mais rápido possível em todas aquelas cidades que foram atingidas. E, mais, que o montante de levantamento permitido não seja limitado a apenas R$ 6.220 do saldo existente em conta, mas sim em sua integralidade. Para isso, não só o Poder Executivo deve ser rápido, mas também o Legislativo.
Mais, importante, ainda, que (iii) seja determinada a imediata suspensão da exigência da cobrança da dívida do estado com a União comentada acima com o congelamento de juros e outros encargos, a fim de que tais recursos possam ser realocados pelo governo estadual tanto nas atividades de resgate que subsistem, como também na manutenção dos abrigos e, posteriormente, na reconstrução da infraestrutura, especialmente das rodovias estaduais, fortemente atingidas.
Em paralelo, mandatória a (iv) prorrogação pelo período de pelo menos um ano da exigência de tributos, para pessoas físicas e jurídicas atingidas pela calamidade, também dentro do pacto federativo. Pode-se pensar também em isenções e incentivos de urgência para tornar o RS um polo de tecnologia com investimentos de gigantes da tecnologia, algumas delas como SAP já presentes no estado.
Importante também que haja (v) a liberação de recursos por parte do governo federal para a recuperação da infraestrutura, além da concessão de financiamentos de longo prazo e investimentos via BNDES, inclusive para Parcerias Público-Privadas (PPPs).
Nessa mesma linha, relembrando que o setor privado brasileiro de construção civil foi impactado por investigações e condenações de corrupção na operação Lava Jato, será necessário pensar em incluir nesse programa empresas em recuperação judicial, estabelecendo-se compromissos de compliance mais rigorosos do que os existentes no passado e que levaram às condenações. Inclusive os próprios acordos de leniência em rediscussão poderiam incorporar investimentos no RS. Não temos tempo a perder com flaflu ou grenal político.
Além disso, (vi) urge a concessão de crédito subsidiado para empresas (incluindo pequenos e microempreendedores) e produtores rurais, por meio do Pronampe, Pronamp e Pronaf, respectivamente.
Ademais, importantíssimo que sejam viabilizados (vii) programas para a construção e doação de moradias e, igualmente, para a disponibilização de crédito subsidiado por parte dos governos federal, estadual e municipais, além do desenho de incentivos, por meio de estímulos fiscais, para tracionar a adoção de medias equivalentes por parte da iniciativa privada.
Ainda em termos de política habitacional, (viii) importante considerar a implantação de aluguel social ou instrumentos equivalentes, contando com subsídio público, fazendo frente ao evidente impacto imobiliário ocasionado pelas enxurradas.
Finalmente, mas não menos importante, (ix) o Fundo de Direitos Difusos, criados pela Lei da Ação Civil Pública com vultosos recursos para prevenção e reparação de ambiente e moradia podem ser revertidos imediatamente ao Rio Grande do Sul via transferência. Há mais de R$ 500 milhões congelados. É talvez por onde começar.
Por fim, (x) não devemos esquecer de caminho via financiamento internacional. O Brasil ocupa a presidência do Brics. A China pode vir a ser grande parceira pela experiência em grandes obras de infraestrutura. Até mesmo regimes de contratação especial devem ser pensados, como na época da pandemia e da Copa.
Desse modo, considerando as 10 medidas acima listadas, que parecem se revelar, por ora, as mais eficientes para a efetiva reconstrução do Rio Grande do Sul, não há como se furtar a reconhecer que muitos, muitos recursos serão necessários para tanto. E, nesse ponto, não há como se deixar de lembrar da solidariedade inerente ao Pacto Federativo; é justamente agora que precisaremos vê-lo funcionar.
Diante desse quadro, dificílimo, não perdemos, contudo, a esperança. Temos a convicção de que reconstruiremos o Rio Grande do Sul com a ajuda da União Federal e de todos os brasileiros (que, diga-se de passagem, por não ser objeto do artigo, deram um show de empatia!). Não será fácil, mas certamente sairemos mais fortalecidos como país.