Parcerias e concorrência em IA: muito barulho por nada?

Spread the love

Autoridades de políticas de concorrência em todo o mundo têm expressado preocupações sobre a competição em setores emergentes de inteligência artificial, com alguns tomando medidas para investigá-los mais profundamente.

Esses medos são alimentados principalmente pela sensação de que plataformas digitais tradicionais (embora em mercados adjacentes) podem usar parcerias estratégicas com empresas de IA para diminuir a competição neste setor de rápido crescimento.

Assine a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas no seu email

Uma Declaração conjunta da Federal Trade Commission dos Estados Unidos (FTC), do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ), da Comissão Europeia e da Autoridade de Concorrência do Reino Unido (CMA), emitida em 23 de julho de 2024, menciona, além dos riscos concorrenciais no setor de IA, que:

Acordos envolvendo os principais atores podem amplificar os riscos. Parcerias, investimentos financeiros e outras conexões entre empresas relacionadas ao desenvolvimento de IA generativa têm sido amplamente difundidos até o momento. Em alguns casos, esses arranjos podem não prejudicar a concorrência, mas em outros casos, essas parcerias e investimentos podem ser usados por grandes empresas para minar ou cooptar ameaças competitivas e direcionar os resultados de mercado em seu favor, em detrimento do público.

Nesse contexto, a CMA anunciou recentemente que investigaria três propostas de parcerias de IA entre plataformas tecnológicas tradicionais e startups de IA:

Parceria entre a Amazon e a Anthropic;
Parceria entre a Microsoft e a Mistral AI; e
Contratação de ex-funcionários da Inflection AI pela Microsoft (sobretudo, incluindo, o fundador Mustafa Suleyman), bem como acordos relacionados à empresa.

No mês passado, a Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) instaurou três procedimentos administrativos para investigar as duas primeiras parcerias e também a “aquisição” da Character AI pelo Google.

É importante observar aqui que a ação do Cade não está (pelo menos neste momento) relacionada a uma expansão da lei antitruste para alcançar parcerias que não são tradicionalmente cobertas por ela. Trata-se de um possível caso de “gun jumping” nos termos da atual Lei de Defesa da Concorrência brasileira. De fato, de acordo com o atual regime brasileiro de controle de fusões e aquisições, algumas aquisições minoritárias estão sujeitas à análise de ato de concentração; e o conceito de “controle” não é necessário para acionar uma notificação de um ato de concentração.

Entretanto, do ponto de vista de política pública, é razoável perguntar se há espaço para uma reforma: se as notificações de ato de concentração se aplicam a um escopo de situações amplos e/ou os limites são muito baixos, os custos administrativos tendem a ser muito altos, tanto para as agências quanto para as partes envolvidas no ato de concentração.

Nesse sentido, mesmo quando não há nada a criticar, do ponto de vista jurídico, nas ações do CMA ou do Cade, essas investigações correm o risco de causar mais prejuízos do que benefícios. De fato, informações disponíveis publicamente sugerem que essas operações podem não justificar uma análise de ato de concentração.

Além disso, dado o cenário altamente competitivo da indústria de IA, há poucos indícios de que essas operações mereçam um exame mais minucioso do que acordos semelhantes em outros setores.

Para que fique claro, não há dúvidas de que o setor de IA é altamente competitivo. As bases de usuários dos serviços de IA cresceram rapidamente e novos participantes estão surgindo. Se as empresas incumbentes pudessem facilmente alavancar sua dominação desses mercados emergentes de IA generativa, não teríamos visto o crescimento de “unicórnios” de IA como OpenAI, Midjourney e Anthropic, para citar alguns.

Enquanto isso, as plataformas de IA desenvolvidas pelas empresas big techs estabelecidas, cada uma com amplos volumes de dados — como a Llama da Meta ou o Bard do Google (recentemente relançado como Gemini) —, têm lutado para ganhar força. Naturalmente, isso não significa que os responsáveis pela aplicação da lei da concorrência não devam se importar com os mercados de IA generativa, mas sim que, atualmente, não há necessidade aparente de maior escrutínio da concorrência nesses mercados.

Para piorar a situação, o excesso de fiscalização nesse campo poderia, paradoxalmente, provocar os próprios danos que as autoridades concorrenciais desejam evitar. Impedir que as chamadas big techs concorram em IA (por exemplo, ameaçando intervir na concorrência no momento em que buscam construir relacionamentos estratégicos com startups de IA) pode frustrar uma importante fonte de concorrência no mercado de IA.

O risco é que as empresas tradicionais não consigam mais entrar nesses mercados e que as startups de IA tenham dificuldade para obter o financiamento necessário para concorrer com empresas maiores de IA.

A concorrência nos mercados de IA é essencial, mas tentar ingenuamente impedir o avanço das empresas de tecnologia tradicionais, por medos equivocados de que elas venham a dominar esse espaço, provavelmente causará mais danos do que benefícios.

Uma grande confusão sobre as participações minoritárias

Existem razões importantes para acreditar que os acordos que a CMA e o Cade estão investigando não terão qualquer impacto negativo na concorrência e poderão, de fato, beneficiar os consumidores. Por exemplo, permitindo que essas startups levantem capital e implementem seus serviços em uma escala ainda maior. Em outras palavras, esses acordos não comportam nenhuma das características de presunção relativa de “aquisições predatórias” ou aquisições de “concorrentes emergentes”.

Mais importante ainda, todas essas parcerias envolvem a aquisição de participações minoritárias que não implicam nenhuma mudança no controle das empresas-alvo (o que por sua vez nos permite inferir que a transação dificilmente prejudicará a concorrência).

A Amazon, por exemplo, não deterá o “controle acionário” da Anthropic. O número exato de ações adquiridas não foi tornado público, mas um investimento indicado de US$ 4 bilhões em uma empresa avaliada em US$ 18,4 bilhões não daria à Amazon uma participação majoritária ou direitos de voto suficientes para controlar a empresa ou sua estratégia competitiva (esses investimentos podem ser convertidos, em alguns cenários, em ações sem direito a voto).

Também foi relatado que isso não conferiria à Amazon nenhum assento no conselho da Anthropic ou direitos especiais de voto (como o poder de vetar algumas decisões). Portanto, há poucas razões para acreditar que a Amazon tenha adquirido, indiretamente ou de fato, o controle da Anthropic. Esse acordo foi recentemente aprovado pela CMA porque a agência “não acredita, portanto, que seja ou possa ser o caso de uma situação de fusão relevante ter sido criada”.

O investimento da Microsoft na Mistral AI é ainda menor, tanto em termos absolutos quanto relativos. A Microsoft está supostamente investindo apenas US$ 16 milhões em uma empresa avaliada em US$ 2,1 bilhões. Isso representa menos de 1% do capital da Mistral, tornando quase impossível para a Microsoft exercer qualquer controle ou influência significativa sobre a estratégia competitiva da Mistral AI.

Da mesma forma, não houve relatos de que a Microsoft adquiriu assentos no conselho da Mistral AI ou direitos especiais de voto. Podemos, portanto, ter confiança de que o acordo não afetará a concorrência nos mercados de IA.

O mesmo se aplica às negociações da Microsoft com a Inflection AI. A Microsoft contratou dois dos três fundadores da empresa, e também pagou US$ 620 milhões por direitos não exclusivos para vender acesso ao modelo Inflection AI por meio de sua plataforma Azure Cloud. É certo que este último poderia implicar (dependendo das especificidades do acordo) algum controle limitado sobre a estratégia concorrencial da Inflection AI, mas atualmente não há provas que sugiram que esse será o caso.

De forma semelhante, a chamada “aquisição” da Character.AI pelo Google implica em um acordo que concede a este último uma licença não exclusiva para a tecnologia de modelo de linguagem da primeira. Os fundadores da Character.AI, Noam Shazeer e Daniel de Freitas, irão retornar ao Google, onde já foram empregados.

Em 4 de setembro, a CMA aprovou o acordo entre Microsoft e Inflection, pois “não gera uma perspectiva realista de uma RDC [redução substancial da concorrência]”, seja como resultado de efeitos unilaterais ou coordenados. Segundo a CMA, a “empresa-alvo” (ou seja, os funcionários da Inflection AI contratados pela Microsoft) não representavam um “entrave competitivo material” para a Microsoft.

No entanto, a CMA declarou em sua decisão que a definição de “fusão” no Reino Unido inclui a contratação de um grupo de funcionários. Embora a orientação de fusões da CMA realmente mencione que “a transferência de ativos ou funcionários por si só pode ser suficiente para constituir uma empresa”, vale a pena questionar se esse critério promove ou dificulta a concorrência.

Uma das fontes de intensa concorrência nos “mercados de IA” é precisamente a vontade dos engenheiros de IA de trabalhar de forma mais independente e ágil em suas próprias startups. O The Economist relata que “todos os oito autores de ‘Attention is all you need’, um artigo publicado em 2017 que forneceu a base algorítmica da IA generativa, deixaram o Google, onde trabalhavam na época. Sete fundaram suas próprias empresas (o outro se juntou à OpenAI)”.

O mesmo artigo observa que a oferta de mão de obra em IA está crescendo: “De acordo com um relatório da Universidade Stanford, em 2011 cerca de 41% dos PhDs em IA assumiram empregos na indústria, aproximadamente a mesma proporção dos que assumiram empregos na academia. Em 2022, essa cifra foi de 71% para a indústria, comparado a 20% para a academia”.

Isso não quer dizer que a aquisição de uma participação minoritária nunca possa levar a danos anticompetitivos. Podem surgir problemas, por exemplo, quando duas empresas concorrentes adquirem participações minoritárias uma na outra — o que pode diminuir os seus incentivos para competir.

Esse cenário, contudo, é muito diferente dos casos em questão, nos quais as empresas são relacionadas verticalmente e, portanto, não têm os mesmos incentivos para reduzir a concorrência. Na verdade, se a Amazon ou a Microsoft fornecem serviços de computação em nuvem às empresas de IA, então, em uma primeira aproximação, a concorrência entre estas últimas beneficia a primeira.

Por fim, nenhum desses acordos envolve qualquer compromisso comportamental concorrencial significativo por parte das empresas-alvo. Não há relatos de acordos de exclusividade ou outros compromissos que possam restringir o acesso de terceiros aos modelos de IA subjacentes das empresas. Novamente, isso significa que é improvável que os acordos produzam um impacto negativo no cenário competitivo nesses mercados.

No extremo oposto da escala, os investimentos em dinheiro de empresas maiores na Mistral e na Anthropic podem permitir que essas empresas concorram melhor com as atuais líderes do setor, como a OpenAI. Dada a natureza incrivelmente acelerada do setor de IA generativa, atrasar essas infusões de dinheiro por vários meses pode ter consequências graves para a concorrência e, em última análise, para os consumidores.

Países precisam atrair e promover a criação de startups

Em um nível mais macro, a forma como as agências lidam com esses acordos propostos pode ter consequências importantes para as suas economias. Por um lado, as autoridades de concorrência (incluindo a CMA) podem ser tentadas a evitar os “erros” que eles provavelmente cometeram durante os anos de formação do que se tornaram as maiores plataformas online da atualidade.

O argumento apresentado por alguns é que uma fiscalização mais rigorosa pode reduzir os altos níveis de concentração que vemos nesses mercados. O contraponto, claro, é que os mercados de tecnologia dinâmicos apresentam características que naturalmente conduzem a níveis relativamente elevados de concentração, e que essa concentração beneficia os consumidores de várias maneiras.

Infelizmente, essa necessidade de coibir erros do tipo falsos negativos pode levar a erros administrativos e judiciais que prejudicam as economias digitais. Ao discutir a Lei de IA da União Europeia durante uma entrevista recente, o presidente francês, Emmanuel Macron, sugeriu implicitamente que o Reino Unido está em uma posição única para retirar investimentos em IA (e outras tecnologias) da UE. Em suas palavras:

Podemos decidir regulamentar muito mais rápido e com muito mais força do que nossos principais concorrentes. Mas regulamentaremos coisas que não mais produziremos ou inventaremos. Isso nunca é uma boa ideia… Quando olho para a França, é provavelmente o primeiro país em termos de inteligência artificial na Europa continental. Estamos empatados com os britânicos. Eles não terão essa regulamentação em modelos fundamentais. Mas, acima de tudo, estamos todos muito atrás dos chineses e dos americanos.

Para aproveitar essa oportunidade, no entanto, os países devem promover um ambiente fértil para a atividade de startups. A abordagem das agências de concorrência na análise de atos de concentração na indústria de IA é uma parte pequena, mas importante, desse quadro.

Olhar para as parcerias de IA de forma imparcial sinalizaria um comprometimento com o tipo de formulação de políticas baseadas em evidências que cria segurança jurídica para startups. Por exemplo, princípios sólidos de análise de atos de concentração garantiriam aos fundadores que a aquisição societária continuará sendo uma estratégia de saída viável em todas as circunstâncias, exceto as excepcionais.

É claro que nada disso quer dizer que os princípios estabelecidos do Direito da Concorrência devam ficar em segundo plano em relação a ambições geopolíticas mais amplas. No entanto, isso sugere que o custo de erros do tipo falsos positivos é particularmente alto em setores-chave como a IA. 

Conclusão

Em suma, a abordagem da CMA e do Cade em relação a essas parcerias de IA é de importância fundamental tanto para a política de concorrência do Reino Unido e do Brasil, quanto para as ambições econômicas mais amplas do país. Essas agências devem, portanto, analisar essas parcerias com uma mente aberta, apesar da importante pressão política e de reputação para ser vista como alguém que está “fazendo alguma coisa” neste setor de ponta.

A IA generativa já está mudando a maneira como muitas empresas fazem negócios e melhorando a produtividade dos funcionários em muitos setores. A tecnologia também é cada vez mais útil no campo da pesquisa científica (por exemplo, para tornar a combinação de proteínas mais previsível na biotecnologia ou para tornar a fusão de energia mais eficiente), onde permitiu novos modelos complexos que ampliam o alcance dos cientistas.

Embora a aplicação sensata seja de vital importância para manter a concorrência e o bem-estar do consumidor, ela deve ser baseada em provas empíricas.

*

Este artigo é baseado em uma postagem publicada em inglês no blog Truth on the Market, em 16 de maio de 2024.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *