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Desde a EC 32/2001, a Constituição Federal, art. 62, § 3º, prevê que as medidas provisórias (MPs) perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de 60 dias, prorrogável uma única vez por igual período, nos termos do § 7º do mesmo artigo. Portanto, é equivocado afirmar que as MPs valem por 120 dias, pois isso depende da prorrogação do prazo constitucional do 60 dias.
Na prática legislativa, tal prorrogação sempre foi quase automática. Nos termos do art. 10 da Resolução 1/2002 do Congresso Nacional, a prorrogação do prazo de vigência de MP não depende de deliberação colegiada, bastando a comunicação da decisão em Ato do Presidente da Mesa do Congresso publicado no DOU. Diz-se que a MP estará automaticamente prorrogada, mas, como se vê, isso depende de uma decisão expressa do presidente do Congresso.
O art. 62, § 7º, da CF usa a expressão “prorrogar-se-á”, como se não houvesse outra opção, mas isso esvaziaria a própria lógica de prever uma “prorrogação”. Se a ideia fosse não dar margem decisória, o prazo já teria sido fixado no valor total. Assim, em tese, a não prorrogação da vigência de MP cabe na formulação textual da CF.
Seja como for, jamais um presidente do Congresso tinha deixado de prorrogar a vigência de MP que, no prazo de 60 dias, contado de sua publicação, não teve sua votação encerrada nas duas Casas do Congresso. Tradicionalmente, a decisão expressa de prorrogação da vigência de MPs sempre foi dada, sem maiores controvérsias.
Entretanto, no último dia 1º de abril, pela primeira vez houve uma decisão do presidente do Congresso Nacional no sentido de não prorrogar a vigência de parte da MP 1202, editada no dia 28 de dezembro de 2023. Tal MP tinha determinado a reoneração gradual da folha de pagamentos de 17 setores produtivos a partir de 1º de abril de 2024; procedido à revogação do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) previsto na Lei 14.148/2021, entre outras providências.
Logo quando da sua edição, como amplamente noticiado, diversas frentes parlamentares pleitearam a devolução da MP 1202. A constitucionalidade da devolução de MPs já foi tratada em colunas passadas. Como explicado, tal costume constitucional pode estar justificado ante de vícios manifestos e insanáveis de inconstitucionalidade de MPs, notadamente quando seus efeitos concretos podem acabar sendo eternizados por força da dinâmica legislativa.
O pedido dos parlamentares para que o Congresso devolvesse a MP 1202 estava fundamentado, notadamente, no fato de que – apenas 2 dias antes da edição da referida MP – o Congresso tinha derrubado o veto presidencial total aposto ao PL 334/2023 e promulgado a Lei 14.784/2023, prorrogando as isenções em comento. Com isso, faltariam à MP 1202 os requisitos da relevância e da urgência previstos no art. 62, caput, da CF, na medida em que tal MP estaria sendo utilizada tão somente para tratar, de forma contrária, um tema já decidido pelo Congresso na mesma sessão legislativa.
A despeito do apelo dos parlamentares, a MP não chegou a ser devolvida. Em vez disso, foi celebrado um acordo político mediante o qual o governo se comprometeu a suprimir o assunto da MP 1202 e enviar um PL específico para debater a desoneração de forma separada.
O governo cumpriu em parte o acordo, e foi editada a MP 1208, em 27 de fevereiro de 2024, que revogou trechos da MP 1202, mas não o art. 6º, inciso II, alínea a, que estabelecia a reoneração da folha de pagamentos dos municípios com até 156 mil habitantes (que corresponde a 96% dos municípios). Atualmente, tais municípios contam com uma redução da alíquota de 20% para 8%, com base no art. 22, § 17, da Lei 8.212/1991, incluído precisamente pela Lei 14.784/2023, revertida pela MP 1202. Há estimativas apontando que essa diferença de arrecadação representa cerca de R$ 10 bilhões.
Vale registrar que, por ocasião do julgamento da ADI 7.232, o STF já tinha reconhecido a existência dessa espécie de “limite formal implícito” à edição de MPs, pelo qual seria vedado ao presidente da República valer-se de MP para desconstituir deliberação do Congresso, ainda mais quando reafirmada na derrubada de vetos presidenciais, nos termos do art. 66, § 4º, da CF. A ADI não chegou a fechar a questão quanto à duração dessa limitação à edição de MPs, se adstrita ou não à mesma sessão legislativa.
Essa ADI 7.232 tinha sido apresentada pelo partido Rede Sustentabilidade contra a MP 1135/2022, a qual postergava o cronograma de desembolso de recursos orçamentários ao setor cultural. Ou seja, tal MP disciplinou a questão de forma diferente do que tinha sido aprovado pelo Congresso nos moldes da Lei do Perse, a Lei Aldir Blanc 2 (Lei 14.399/2022) e a Lei Paulo Gustavo (LC 195/2022). Na petição inicial, a Rede argumentou o desvio de finalidade traduzido em abuso de poder na utilização da MP pouco mais de um mês após a derrubada de um veto presidencial pelo Congresso.
Na prática, a referida MP 1135/2022 incorrera em problema semelhante ao da MP 1202 em comento: ambas foram utilizadas pelo presidente da República para “reverter” decisões legislativas tomadas pelo Congresso, reforçadas pela rejeição de vetos presidenciais, em tentativa de impor sua vontade unilateral em detrimento das maiorias parlamentares.
Aqui não é o caso de entrar em mais detalhes da ADI 7.232. Do voto da ministra relatora Cármen Lúcia, recomenda-se a leitura, de forma especial, do item 40 e seguintes (a partir da pág. 74 do acórdão que referendou, por maioria, a medida cautelar, vencidos os ministros André Mendonça e Nunes Marques).
Embora sem usar essas palavras, na prática, a decisão reconheceu a inconstitucionalidade na edição de MP para normatizar, de forma diversa, matéria já deliberada pelo Congresso. Contudo, a justificação da decisão se centrou simplesmente nos pressupostos da falta de relevância e urgência da CF e no fato de que a MP tentava modificar assunto disciplinado por LC (art. 62, § 1º, III).
Agora, é precisamente esse “novo” limite formal – mas afirmado de forma mais categórica – que o Partido Novo e o Podemos pretendem ver encampadas pelo STF, com o ajuizamento, respectivamente, da ADI 7.587 e da ADI 7.609, ambas sob a relatoria do ministro Cristiano Zanin, contra a mesma MP 1202, na parte que reverte a referida Lei 14.784/2023.
A argumentação das iniciais é praticamente idêntica, no sentido de que a leitura combinada do art. 62, § 1º, inciso IV, e § 10, c/c art. 67, todos da CF, conduziria a um limite formal implícito à edição de MPs consistente na impossibilidade de rediscussão e, sobretudo, a normatização via MP, de matéria rejeitada ou aprovada e pendente de apreciação por determinado agente político componente do processo legislativo na mesma sessão legislativa.
Foi esse o contexto fático-jurídico da decisão do presidente do Congresso em não prorrogar a vigência de um trecho da MP 1202. Como se vê, o caso concreto ajuda (e muito) a reputar a providência adequada: à luz do entendimento do STF tomado na ADI 7.232, o trecho com vigência não prorrogada já era inconstitucional, porquanto revertia a decisão consubstanciada na Lei 14.784/2023, fruto de derrubada de veto, tanto que foi promulgada pelo presidente do Senado com base no art. 66, § 7º, da CF.
Além disso, o presidente do Congresso apresentou uma robusta fundamentação para a sua decisão inédita no processo legislativo brasileiro, com destaque para a afirmação no sentido de que “o poder de editar medidas provisórias não pode ter o condão de frustrar prontamente uma decisão tomada pelo Poder Legislativo no processo de formação de uma lei, funcionando como uma etapa adicional e não prevista do processo legislativo, de verdadeira revisão da rejeição do veto, em evidente conflito com o princípio da separação dos Poderes”.
Daí poderia surgir a pergunta: se a MP 1202 já era inconstitucional, por que o presidente do Congresso não a devolveu antes? Na linha do já argumentado aqui, em se considerando a devolução uma providência drástica, e dado que o trecho da MP só teria eficácia a partir de 1º de abril de 2024, conforme o art. 6º, faltaria o elemento de periculum in mora para a providência. A não prorrogação de vigência da MP após 60 dias, portanto, foi suficiente para conter os efeitos concretos da inconstitucionalidade formal, e necessária para tanto.
Juridicamente, a não prorrogação da vigência de uma MP, no todo ou em parte, tem indiscutível suporte constitucional no art. 62, §§ 3º e 7º, da CF. Como já explicado, trata-se de uma decisão monocrática do presidente do Congresso e não precisaria estar, necessariamente, embasada em alguma inconstitucionalidade. De certa forma, assemelha-se a uma devolução.
Nesse sentido, não custa lembrar que o presidente do Congresso não precisaria esperar o decurso dos 60 dias para encerrar a vigência de uma MP, podendo fazê-lo a qualquer tempo: basta recordar, por exemplo, que na devolução da MP 1068/2021 o encerramento se deu 10 dias após a edição da MP. Da mesma forma, tampouco a prorrogação da MP nos termos do art. 62, § 7º, da CF, impediria providência semelhante, desde antes dos 120 dias.
Como é a primeira vez que se procede à não prorrogação de vigência de uma MP, é cedo para afirmar que essa providência vai ocupar o lugar da devolução. Por um lado, tem a vantagem da expressa previsão constitucional; por outro, a desvantagem de um prazo amarrado para sua adoção.
Foi noticiado que a AGU estuda ir ao STF para questionar a decisão do presidente do Congresso no caso da MP 1202. No entanto, por toda a explicação que se acaba de dar, é pouco crível que o STF vá derrubar a não prorrogação da vigência, seja pela expressa previsão constitucional dessa possibilidade, seja pela fundamentação impecável que foi apresentada pelo Congresso, seja por conta do seu próprio entendimento firmado na ADI 7.232.
Talvez mereça maior preocupação o desfecho das ADIs 7.587 e 7.609, apresentadas contra a MP 1202, especialmente quanto aos contornos desse novo limite formal implícito à edição de MPs, a saber: 1) se ficará circunscrito apenas às situações em que uma MP reverte uma decisão legislativa “qualificada” (leia-se, reforçada pela rejeição de um veto presidencial) ou não; bem como 2) se estará limitado à mesma sessão legislativa ou não, pois disso dependerá o padrão de relacionamento entre os poderes. Sem um freio à edição de MPs, o Executivo continuará predominando no processo legislativo brasileiro.