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Este texto é a segunda parte[1] do exame da Lei 14.879/2024, que mexeu no art. 63 do Código de Processo Civil (CPC).
Como se verá, há pontos de interseção entre este texto e o anterior, mas a premissa permanece a mesma: os §§1º e 5º do art. 63 do CPC não estão ligados entre si, um não complementa o outro. Eles se conectam pela circunstância de serem regras sobre competência territorial e por serem produto de um mesmo momento histórico: a reação do Judiciário brasileiro, com forte atuação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[2], contra o conjunto de práticas processuais ilícitas reunidas sob a rubrica litigância abusiva, de que o abuso na escolha negocial do foro competente seria um exemplo.
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Agora, examino o §1º desse mesmo art. 63, que sofreu alteração. Eis a nova redação do § 1º do art. 63 do CPC:
“§ 1º A eleição de foro somente produz efeito quando constar de instrumento escrito, aludir expressamente a determinado negócio jurídico e guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor”.
O legislador acrescentou uma terceira exigência formal para a validade da cláusula de eleição de foro: a “pertinência da escolha”, que se soma à necessidade de forma escrita e de alusão expressa a negócio jurídico.
A mudança me pareceu despropositada, inconveniente e perigosa[3]. É fundamental que a doutrina e os tribunais construam um caminho dogmático seguro, coerente (art. 926, CPC) e compatível com a Constituição, para a aplicação da nova regra. Esse é o propósito das observações seguintes sobre esse terceiro requisito formal da cláusula de eleição de foro.
Seguem, portanto, as minhas anotações.
O trecho “guardar pertinência”, que consta do dispositivo, deve ser compreendido como a necessidade de o foro escolhido ter alguma espécie de vínculo com o negócio onde está inserido.
O dispositivo menciona dois fatores que justificam a pertinência do foro escolhido: o domicílio ou residência das partes ou o local da obrigação.
No primeiro caso, a vinculação pode existir além do mero local onde as partes moram. Basta imaginar casos em que uma das partes é uma pessoa jurídica empresária, com atuação relevante em diversas localidades, ou mesmo com ações negociadas em bolsa de valores.
No segundo caso, é bom lembrar: o foro de eleição serve às causas que decorrem do negócio onde está inserido (art. 78, Código Civil), razão pela qual o vínculo entre eles é constitutivo: um surge em razão do outro.
Local da obrigação não se confunde necessariamente com local de cumprimento da obrigação (art. 53, III, “d”, CPC) – pode ser, por exemplo, o local de surgimento da obrigação. Além disso, a “obrigação” pode ser principal ou acessória[4].
Como se trata de regra que limita a vontade das partes, num tema em que ela tradicionalmente exerce um papel bem relevante (art. 63, caput, CPC, foi mantido na íntegra, convém lembrar[5]), é preciso dar uma interpretação mais flexível à exigência de vinculação do foro escolhido apenas ao local da obrigação ou do domicílio ou residência das partes, sob pena de restringir-se, desarrazoadamente, a autonomia da vontade.
O dispositivo normativo traz apenas algumas variáveis do negócio, às vezes simplesmente contingenciais e pouco relevantes; elas devem ser sopesadas com outras tantas, como a área de clientela que se que pretende alcançar, a localização dos bens dados em garantia, a alocação de riscos e os interesses e estratégias negociais.
Demonstrado o vínculo do foro escolhido com o negócio em que está inserido, a cláusula deve ser considerada válida – “vinculação”, aliás, é o termo utilizado pelo legislador para tratar de assunto correlato no §5º do mesmo art. 63 do CPC.
Essa é a interpretação que mais bem concilia o respeito ao autorregramento da vontade (norma fundamental do processo civil brasileiro) e a proteção contra o exercício abusivo/fraudulento na celebração do negócio jurídico processual. É, assim, a interpretação que me parece em conformidade com a Constituição.
Capazes as partes, a validade do objeto cláusula de eleição de foro deve ser considerada prima facie; a invalidade de um negócio deve ser vista como algo excepcional, ainda mais no caso do foro de eleição, negócio antigo, tradicional e muitíssimo utilizado.
Admite-se a escolha do foro, sem a exigência de vinculação ao negócio, se favorável ao consumidor, como estabelece a parte final do 1º do art. 63 do CPC. Difícil imaginar, no entanto, um foro mais favorável ao consumidor do que o do seu domicílio ou residência ou do local da obrigação. Mas, talvez por precaução, e seguramente para assegurar uma tramitação legislativa mais fácil, o legislador optou por fazer essa ressalva de proteção consumerista.
É permitida a celebração de negócio de certificação entre as partes com o propósito de explicitar a justificativa da vinculação da escolha do foro ao negócio jurídico onde está inserido[6].
Exatamente por isso, a decisão que reconhece a falta de pertinência da escolha deve ser devidamente fundamentada (art. 489, §1º, II, CPC: “guardar pertinência” é conceito juridicamente indeterminado, que exige fundamentação que demonstre a sua concretização). Além disso, antes de decidir, o juiz dever intimar o autor a manifestar-se a respeito da questão, como manda o art. 10 do CPC[7].
A regra consagra exceção a outra regra antiga e bem conhecida: o juiz não pode conhecer ex officio da incompetência territorial relativa (arts. 64, §1º, e 65, CPC). Agora, havendo escolha “impertinente” do foro, há nulidade da cláusula, que pode ser sancionada ex officio, com a remessa dos autos ao juízo competente. Essa exceção alinha-se à previsão de controle da cláusula abusiva de foro de eleição (art. 63, §3º, CPC).
[1] A primeira parte está aqui: DIDIER Jr., Fredie. “Escolha de “juízo aleatório”, abuso do direito e controle pelo juiz”. Em https://www.jota.info/artigos/escolha-de-juizo-aleatorio-abuso-do-direito-e-controle-pelo-juiz, 2024.
[2] Recomendações n. 127/2022, 129/2022, 135/2022 e 159/2024. Sobre o tema, DIDIER Jr., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. O Conselho Nacional de Justiça e o Direito Processual. 4a ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2025.
[3] O Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP apresentou, durante a tramitação do processo legislativo que redundou na Lei n. 14.879/2024, nota técnica contra o projeto, com argumentos irrespondíveis apontando os equívocos da ideia e das premissas da proposta. A nota aponta, ainda, a incoerência da restrição ao negócio num sistema jurídico que prestigia cada vez mais a autonomia da vontade, inclusive no âmbito processual. A nota foi assinada por Cassio Scarpinella Bueno, Rogéria Dotti, Antonio do Passo Cabral e Eduardo Talamini. A nota pode e deve ser lida em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9540538&ts=1715721172826&disposition=inline e em https://www.academia.edu/125859056/Nota_t%C3%A9cnica_do_Instituto_Brasileiro_de_Direito_Processual_ao_PL_1803_23_CABRAL_TALAMINI
[4] Como bem percebeu Leandro Fernandez, em conversa com o autor.
[5] Como fartamente demonstrado em STJ, 2ª S., EResp n. 305.950/PR, rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 09.03.2005.
[6] Sugestão de Leandro Fernandez, apresentada em conversa com o autor. Sobre os negócios de certificação, ver DIDIER Jr., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Introdução à justiça multiportas. São Paulo: Editora Juspodivm, 2024, p. 179-180 e p. 770-774.
[7] Nesse sentido, AVELINO, Murilo. “Modificações no art. 63 do CPC via Lei 14.879/24: 6 pontos de preocupação”. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2024-jun-11/modificacoes-no-art-63-do-cpc-via-lei-14-879-24-6-pontos-de-preocupacao/>.