Planejamento tributário no Brasil: a certeza da incerteza

Spread the love

As elevadas cargas tributárias associadas às opções adotadas pelos contribuintes para sua redução trazem à tona a discussão sobre os limites do planejamento tributário: até que ponto pode ser considerado legítimo?

Não há como falar em planejamento tributário sem abordar os conceitos de elisão e evasão fiscal, que diferem nas ferramentas que são utilizadas pelos contribuintes para obter uma economia tributária. Enquanto na elisão fiscal o contribuinte alcança uma economia de tributos a partir de uma interpretação possível e razoável da lei tributária; na evasão fiscal, o contribuinte oculta o fato gerador do tributo com o objetivo de não o pagar nos termos da lei, lançando mão de expedientes como sonegação, conluio, fraude e simulação[1].

Como consequência de operações cada vez mais globalizadas, aqueceu-se o debate entre os Estados a respeito da criação de instrumentos jurídicos e normativos que não somente estabelecessem balizas do que seria uma elisão fiscal considerada legítima pelas autoridades fiscais mundo a fora, mas que também criassem métodos eficazes de fiscalizar e de punir aqueles contribuintes que pratiquem a evasão fiscal.

Em se tratando de elisão fiscal, cada Estado define o seu termômetro de tolerância ao planejamento tributário, dando menor ou maior liberdade ao contribuinte na construção dos arranjos, em oposição ao interesse arrecadatório do Estado.

Conheça o JOTA PRO Tributos, plataforma de monitoramento tributário para empresas e escritórios com decisões e movimentações do Carf, STJ e STF

Nessa tendência de estabelecer limites ao planejamento tributário considerado legítimo, passou-se a falar em normas antielisivas, que costumam ser enquadradas em três espécies: General Anti-Avoidance Rules (GAAR), Targeted Anti-Avoidance Rules (TAAR) e Specific Anti-Avoidance Rules (SAAR).

As primeiras consistem em normas gerais para restringir a elisão fiscal a partir de uma estrutura de planejamento tributário indeterminada e genérica, em que inexiste uma abordagem única e que não é possível prevê-las antecipadamente, já as outras duas baseiam-se em normas específicas que pretendem impedir estruturas já utilizadas pelos contribuintes e conhecidas pelas autoridades fiscais. A diferença entre elas está no escopo, enquanto as TAAR têm um escopo mais amplo, tendo como alvo uma gama de atividades similares, as SAAR têm um escopo mais restrito, tendo como alvo transações específicas.

Ou seja, enquanto as GAAR possuem alto grau de abstração normativa, deixando a cargo do intérprete a conformação da norma ao caso concreto, as TAAR e as SAAR atuam de forma mais assertiva para “tapar a brecha” legislativa existente e vedar estruturas já conhecidas que se pretendem combater.

No ordenamento jurídico brasileiro, são encontradas diversas TAARs e SAARs espalhadas na legislação tributária, atuando no fechamento das lacunas existentes. A título de exemplo, citam-se as regras de preço de transferência; as regras de subcapitalização; tributação em bases universais e os limites à dedução dos juros sobre capital próprio.

Por outro lado, não existe ainda, no Brasil, uma norma geral antielisiva (GAAR), diferentemente do que ocorre em alguns países, como Espanha, Alemanha, Portugal, França e Estados Unidos, que, de um modo geral, internalizaram normas de combate à elisão fiscal que levam em consideração as teorias de combate aos planejamentos tributários como propósito negocial, abuso de forma, abuso de direito, consideração econômica, dentre outras.

Em 2001, foi inserido, no Código Tributário Nacional, o parágrafo único, do art. 116[2], que estabeleceu que a autoridade administrativa pode desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de simular ou dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

Durante anos, a doutrina divergiu a respeito da natureza dessa norma jurídica, havia quem defendesse que o parágrafo único, do art. 116 era uma norma geral antielisiva (GAAR) brasileira[3], enquanto outros defendiam se tratar de uma norma antievasiva[4], portanto, para combater as espécies de planejamento tributário que se utilizavam de mecanismos ilícitos para driblar a tributação.

Em 2022, o Supremo Tribunal Federal deu a palavra final. No julgamento da ADI 2446, foi declarada a constitucionalidade do parágrafo único, do art. 116, do CTN e definido que se trata de uma norma jurídica para combater a evasão fiscal.

A despeito de ter sido reconhecida a constitucionalidade desse dispositivo, o STF debateu, sem cravar seu entendimento, se a referida norma teria, ou não, eficácia limitada, diante da necessidade de edição de lei ordinária que estabeleça os procedimentos e parâmetros que devem ser adotados pelo Fisco para que possa desconsiderar atos ou negócios jurídicos realizados pelos contribuintes.

Houve diversas iniciativas parlamentares para regulamentar referido dispositivo, a exemplo das Medidas Provisórias n. 66/2002 e 685/2015 e dos Projetos de Lei n. 133, 536, 537/2007, porém, ou não foram aprovadas pelo Poder Legislativo ou seguem em tramitação, de modo que, até o momento, não há lei ordinária regulamentando o dispositivo.

Portanto, atualmente, no cenário legislativo brasileiro, inexiste norma geral antielisiva (GAAR), já que, de acordo com o precedente vinculante do STF, definiu-se que o parágrafo único do art. 116 do CTN tem natureza de norma antievasiva – cuja aplicabilidade é controversa por parte da doutrina e da jurisprudência, em razão da ausência de regulamentação por lei ordinária.

Além disso, conceitos, como propósito negocial e primazia da substância sobre a forma, que levam em consideração a finalidade econômica da operação e a substância na sua estrutura permanecem sem definição no ordenamento jurídico brasileiro.

Diante desse cenário, as divergências interpretativas entre Fisco e contribuintes frente às diversas estruturas de planejamento tributário existentes acabam desaguando no contencioso administrativo e judicial, que realizam uma análise casuística das operações.

Na esfera administrativa, o principal responsável pela análise das estruturas de planejamento tributário no Brasil é o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), órgão administrativo paritário composto por igual número de conselheiros representantes da Fazenda Nacional e dos contribuintes, cujo empate é resolvido pelo voto de qualidade, proferido pelo presidente da sessão, posição ocupada por representantes do Fisco.

Na esfera judicial, algumas estruturas de planejamento já foram analisadas pelos Tribunais Regionais Federais. Quanto aos tribunais superiores, STJ e STF, casos em que são analisadas estruturas de planejamento tributário não são comuns[5], seja em decorrência da impossibilidade de as Cortes Superiores reapreciarem fatos e provas; seja porque o governo aproveita o cenário de incerteza na jurisprudência administrativa para promover programas de parcelamento, de forma que, diante da insegurança jurídica, os contribuintes acabam preferindo aderir ao parcelamento a levar a discussão para o Judiciário.

Nesse cenário, para entender como os tribunais vêm se posicionando no Brasil, e considerando que, em matéria de planejamento tributário, a análise jurisprudencial é realizada de forma eminentemente casuística, analisaremos os institutos jurídicos e as balizas que são utilizadas pelos órgãos julgadores no contexto de duas estruturas que são/foram comumente utilizadas pelos contribuintes: “ágio interno” e operação “separa-sem-separar”.

Analisando a primeira estrutura, tem-se que o ágio é o valor do sobrepreço pago por um comprador sobre o valor de um ativo. Tratando-se de investimento decorrente de uma participação societária em uma empresa, o ágio pode ocorrer quando um comprador adquire de um vendedor um investimento correspondente a ações societárias de uma terceira pessoa jurídica em valor superior ao seu valor patrimonial. Quando a aquisição de participação societária ocorre entre empresas do mesmo grupo, a jurisprudência apelidou a operação de “ágio interno”.

A partir de 2014, o art. 22 da Lei nº 12.973/14 expressamente vedou a amortização fiscal do ágio interno. Contudo, antes da publicação da referida lei, durante a vigência da Lei 9.532/97, o ágio pago podia ser deduzido da base de cálculo do imposto de renda (IR) e da contribuição social sobre lucro líquido (CSLL) – a chamada amortização – o que acabava por reduzir o valor do tributo a pagar. Assim, ainda é bastante comum discussões sobre ágio interno referente a períodos de apuração anteriores à Lei nº 12.973/14.

Os precedentes da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf (CSRF) envolvendo ágio interno são, em sua maioria, desfavoráveis ao contribuinte (Acórdãos 9101-006.888, 2024; 9101-006.845, 2024; 9101-006.477, 2023; 9101-006.460, 2023).

O entendimento que prevalece é no sentido de que o fato de o vendedor da participação societária e de o comprador integrarem o mesmo grupo econômico e estarem submetidos a um controle comum, evidenciaria uma “artificialidade” da reorganização societária, que careceria de propósito negocial e substrato econômico e impediria o aproveitamento tributário do ágio. Exige-se, para legitimar o planejamento, a demonstração de razões econômicas, para além da mera economia tributária, a fim de que seja permitida sua amortização.

No Judiciário, por sua vez, a discussão quanto à possibilidade de amortização do ágio interno chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, ao contrário da jurisprudência dominante do Carf, decidiu de forma favorável ao contribuinte no conhecido Caso Cremer (REsp n. 2.026.473/SC, Relator Ministro Gurgel de Faria, julgado em 5/9/2023, DJe de 19/9/2023).

A 1ª Turma do STJ entendeu que não cabe à autoridade fiscal impedir a dedutibilidade do ágio nas hipóteses em que o instituto é decorrente da relação entre “partes dependentes” (ágio interno); ou seja, não é cabível presumir, de maneira absoluta, que esse tipo de organização é desprovido de fundamento material/econômico. Assim, compete ao Fisco, caso a caso, demonstrar a artificialidade das operações, mas jamais pressupor que o ágio entre partes dependentes já seria, por si só, abusivo.

A decisão representou uma novidade na Corte, que raramente examina a abusividade (ou não) de planejamento tributário, diante da vedação à incursão no conjunto fático-probatório.

O entendimento, apesar de não vinculante, deve servir de orientação aos Tribunais Regionais Federais, que ainda oscilam sobre a matéria: TRF4: (5049407-66.2022.4.04.0000 – favorável); (5004003-95.2014.4.04.7202 – desfavorável); TRF3: (5024068-10.2018.4.03.6100 – favorável); TRF2 (5006168-26.2021.4.02.5101 – desfavorável).

Já com relação à segunda estrutura de planejamento tributário objeto do presente estudo, tem-se que a operação “separa-sem-separar” consiste em uma transferência de ativos (participação societária de uma empresa operacional) de uma holding para seus sócios pessoas físicas, antes de a empresa operacional (target) ser vendida a terceiro.

Antes de haver interessados na compra da Target, a estrutura que estava posta era a seguinte: a target é controlada pela holding, cujos sócios são pessoas físicas. Essa estrutura está comumente presente em empresas familiares, em que a criação da holding se justifica para fins de governança familiar e/ou planejamento sucessório.

O ponto de partida do planejamento é quando a target passa a ser interesse de compra de terceiro. Como a holding é sua controladora, o terceiro interessado poderia firmar com a holding contrato de compra e venda de participações societárias da target, no entanto, na operação conhecida como “separa-sem-separar”, o que ocorre é que o terceiro interessado irá adquirir a target das pessoas físicas, enquanto a holding sai de cena.

Isso, porque, as pessoas físicas, sócias da holding, realizam uma redução em seu capital social, conforme interpretação do art. 173, da Lei nº 6.404/76 (Lei das S.A) c/c art. 1.082 do Código Civil, que permitem a redução de capital social quando os sócios o entenderem por excessivo.

Por sua vez, quando da redução do capital social, os sócios pessoas físicas avaliam os ativos da holding (que correspondem às ações da target) a valor contábil (custo de aquisição tributário), por interpretação decorrente do art. 22 da Lei nº 9.249/95, que confere ao contribuinte a opção de, quando da redução do capital social, avaliar os bens pelo valor contábil ou pelo valor de mercado. Assim, os sócios registram a redução de capital em suas declarações de imposto de renda a valor contábil, e as participações societárias da target, que antes eram ativos da holding, passam a integrar o patrimônio das pessoas físicas.

Inscreva-se no canal de notícias tributárias do JOTA no WhatsApp e fique por dentro das principais discussões tributárias!

A economia tributária gerada nessa operação se dá da seguinte forma: com a transferência dos ativos da holding para as pessoas físicas, a tributação do ganho de capital gerado na operação de alienação de participação societária da target não mais recai sobre a holding, mas sim sobre os sócios pessoas físicas. Se tributado pela holding, sofreria a incidência de uma alíquota de 34%, correspondente ao IRPJ e à CSLL, enquanto, se tributado pelas pessoas físicas, sofre a incidência de uma alíquota que poderá variar de 15% a 22,5%, a título de IRPF.

Os precedentes do Carf (Acórdãos nºs 9101-004.506, 2020, 9101.004.335, 2020) apontam que, para aceitar essa estrutura, o órgão tem exigido que os contribuintes demonstrem as razões extrafiscais que justifiquem a redução do capital social da holding. Caso contrário, de acordo com esse entendimento, estaria ocorrendo um desvirtuamento da norma prevista no art. 22 da Lei nº 9.249/95, uma vez que os contribuintes (sócios pessoas físicas) buscam deliberadamente, mediante operações societárias, esquivar-se de recolher o imposto sobre o ganho de capital.

A despeito disso, e cientes de que a análise de operações envolvendo planejamento tributário é realizada caso a caso, encontrou-se precedente favorável do Carf (Acórdão nº 9101-004.709, 2020), em que os contribuintes foram capazes de demonstrar que havia uma razão para que a operação “separa-sem-separar” ocorresse daquela forma, derivada de uma desavença entre os sócios, em que apenas um sócio tinha interesse em alienar a target, o que justificava a redução do capital social para a retirada do outro sócio.

Os exemplos de estruturas citados acima são apenas uma pequena amostra sobre o assunto em um universo de arranjos de planejamento possíveis. Serviram, para os fins que se presta este artigo, para demonstrar que, até o momento, não existem critérios claros e definidos que delimitem os contornos do que se considera um planejamento tributário legítimo no Brasil.

Diante da ausência de maturidade normativa sobre os limites do planejamento tributário, o Fisco passou a se valer do contencioso administrativo para instituir mecanismos de controle da elisão fiscal, de forma que as estruturas de planejamento são analisadas caso a caso, ausente uma norma geral que traga um direcionamento interpretativo.

Assim, o Carf, em especial, passou a rejeitar diversas estruturas criadas pelos contribuintes que, de alguma forma, afastaram ou diminuíram a tributação. Como fundamento, em alguns casos, importa conceitos estrangeiros que não se encontram positivados no ordenamento jurídico brasileiro, como o propósito negocial e a primazia da substância sobre a forma, que, devido ao alto grau de abstração e subjetividade na sua aplicação, não possuem uma linearidade.

A jurisprudência oscilante e as divergências interpretativas refletem a insegurança jurídica existente sobre a matéria, que aumentam a desconfiança na relação Fisco/contribuinte – caminhando na contramão de um desenvolvimento sustentável, onde se busca a redução desse espaço de desconfiança – e impactam o ambiente de negócios no Brasil.

Revela-se a necessidade premente de avanços na regulamentação e na definição de parâmetros claros para o planejamento tributário lícito, a fim de promover maior segurança jurídica e previsibilidade para os contribuintes. Atualmente, a única certeza do contribuinte é a incerteza e insegurança sobre como conduzir seus negócios, ponderando o risco/benefício da economia tributária frente o risco de questionamento fiscal.


[1] A despeito de se ver, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, uma confusão terminológica no que se refere ao emprego desses conceitos, os autores do presente estudo adotam a terminologia apresentada por Ricardo Lobo Torres, por considerá-la adequada para os fins que este artigo se propõe. (TORRES, Ricardo Lobo. Planejamento Tributário: elisão abusiva e evasão fiscal. Campus Jurídico, 2013)

[2] Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos:

[…]

Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. (Incluído pela Lcp nº 104, de 2001)

[3] Nesse primeiro grupo, cita-se Ricardo Lobo Torres, Ives Gandra da Silva Martins, Marco Aurélio Greco. Um resumo do entendimento dos doutrinadores citados pode ser encontrado na obra Planejamento tributário, de Leonardo Aguirra de Andrade. São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 175-185.

[4] No segundo grupo, cita-se Alberto Xavier, Ricardo Mariz de Oliveira, Paulo Ayres Barreto, Sacha Calmon, Heleno Taveira Torres. Um resumo do entendimento dos doutrinadores citados pode ser encontrado na obra Planejamento tributário, de Leonardo Aguirra de Andrade. São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 175-185.

[5] Cita-se, a título de exemplo, julgamento recente (em 21/02/2024) realizado pelo STF, na Reclamação Constitucional nº 65484, em que decisões administrativas – inclusive acórdãos do CARF – foram cassados, uma vez que, no caso concreto, a autoridade administrativa havia desconsiderado a estrutura de contratação de artistas utilizada pela Globo, para fins fiscais e previdenciários, sob a alegação de que os contratos de prestação de serviços firmados (“pejotização”) seriam uma simulação para esconder o suposto vínculo de emprego entre a Globo e os sócios de tais pessoas jurídicas prestadoras de serviços. O STF entendeu que as decisões administrativas deixaram de observar precedentes vinculantes da Corte que, em linhas gerais, firmaram entendimento no sentido de que está autorizada a constituição de vínculos distintos da relação de emprego, a legitimar a escolha pela organização das atividades da empresa por meio da contratação de pessoas jurídicas prestadores de serviços artísticos e culturais, sem vínculo empregatício, de forma que o texto constitucional não permite, ao poder estatal impor um único e taxativo modelo organizacional para as empresas.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *