No mundo atual, a percepção das dificuldades não pode mais se dissociar do remanejamento dos quadros funcionais.
Pensando mais a longo prazo, a percepção das dificuldades possibilita uma melhor visão global dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

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Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

Por um conceito jurídico de desinformação que enxergue além do Direito

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Ao longo das sessões de julgamento sobre a constitucionalidade do Art. 19 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) no Supremo Tribunal Federal, vários conteúdos circularam criticando uma eventual decisão da Corte pela inconstitucionalidade do dispositivo argumentando que o conceito de desinformação é muito “fluido” ou que isso daria à plataformas um poder de “determinar” o que é crime ou não”.

Ambos os argumentos partem de premissas absolutamente enviesadas, consideram que o direito só pode atuar sobre aquilo que é tipificado em lei, numa leitura positivista e orientada para o punitivismo dos usuários da internet. Debater a regulação das plataformas de rede sociais não significa admitir um estado de censura ou de perseguição contra quem expressa sua opinião nesses espaços. Pelo contrário, passa por convocar as plataformas a exercerem sua função social na construção de um ambiente digital mais saudável, através de ferramentas que permitam não apenas o controle prévio de conteúdos indiscutivelmente ilegais, mas também a instituição de processos de avaliações transparentes e que respeitem os valores constitucionais brasileiros.

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O conceito de desinformação está muito bem delineado nos campos das ciências da comunicação e econômicas. Assim como ocorre com a categoria “juros”, em que não há uma definição legal, mas opera em vários dispositivos normativos no ordenamento brasileiro a partir de uma construção objetiva das ciências econômicas, a desinformação não necessariamente precisa de uma lei que a delimite, mas de uma compreensão holística, que recorra ao conhecimento de outras ciências sociais aplicadas.

Para buscar um entendimento, ainda que rápido, sobre o conceito de desinformação, é preciso abordar a definição de informação e pensar nessa categoria como ponto de partida para organizar os conceitos e mitigar as disputas de sentido que contaminam o debate. Harari (2024)[1] defende que a informação tem a função de “conectar diferentes pontos dentro de uma rede, sejam pessoas, organizações ou ideias”. Ou seja, informar é dar forma. Por mais simples e reducionista que essa frase possa parecer, ela ajuda a compreender como informações falsas ou imprecisas atuam em sintonia com o conjunto de crenças e possuem um papel significativo na congregação de pessoas. Informar, para Harari, é criar novas realidades conectando elementos díspares, sejam eles pessoas, ideias ou entidades.

Já na perspectiva do direito, em especial do ordenamento jurídico brasileiro, a informação é tratada como um direito fundamental e elemento central para a concretização da democracia, estando intrinsecamente ligada aos princípios constitucionais da transparência, cidadania e liberdade de expressão (Mello, 2022)[2]. A Constituição Federal de 1988 traz o conceito em diversos dispositivos, especialmente nos incisos XIV e XXXIII do Art. 5º, refletindo a compreensão de que a informação não é apenas um bem jurídico, mas também um instrumento essencial para a concretização de direitos, permitindo aos cidadãos participarem ativamente na vida pública e no controle social das instituições.

A era digital redefiniu a natureza, o valor e a acessibilidade da informação, levando a novos modelos econômicos, onde a acumulação desse ativo gera poder e, por consequência, movimenta os interesses de determinados agentes, especialmente das plataformas de redes sociais, na lógica do Capitalismo de Vigilância (Zuboff, 2019)[3]. Com a entrada das plataformas de redes sociais no mercado de capitais, o volume de usuários e seus níveis de engajamento se tornaram indicadores significativos do valor de mercado dessas empresas, determinando  sua  capacidade de gerar receita por meio de publicidade e de outras estratégias de monetização. 

Mapear a arquitetura jurídica desses mercados ajuda a compreender a natureza dos esforços empreendidos pelas big techs para administrar as informações pessoais e gerar mais lucro, o que está totalmente conectado com a circulação de desinformação. Tal arquitetura se aproveita de atalhos cognitivos, como preconceitos e conjunto de crenças para maximizar a retenção de atenção e criar um ciclo vicioso onde conteúdos carregados emocionalmente têm maior probabilidade de serem compartilhados e engajados, aumentando a sua circulação e alcançando mais usuários. 

Como consequência, essa atividade aumenta os usuários ativos mensais (MAU)[4] da plataforma, a tornando mais atraente para anunciantes e investidores. Nessa perspectiva, a falta de regulação dos conteúdos nas plataformas de rede social é um ótimo negócio para elas. Ao mesmo tempo em que gera ganhos de capital social, midiático e econômico para alguns agentes, esse modelo de negócios produz problemas para os estados e governos, contaminando negativamente decisões coletivas, corroendo os valores sociais e democráticos dos Estados.

Até agora já vimos, ainda que de maneira superficial, que informação é um elemento de coesão, um direito, uma ferramenta legal e um ativo econômico. Tudo isso junto em diferentes contextos. Para avançar e discutir o conceito de desinformação é preciso olhar além do conteúdo em si e considerar sua criação e impacto. Isso significa examinar a “constituição” deste fenômeno, que se refere à sua composição ou estrutura, mas também analisá-la na perspectiva de “processo”,  como ela se espalha e evolui ao longo do tempo e seus efeitos nos sistemas sociais (Recuero, 2024)[5].

Entendendo essa lógica, o próximo passo é fazer a separação de desinformação da má-informação. Enquanto a primeira refere-se a um processo de produção de conteúdos falsos com o dolo específico de gerar caos ou desmobilizar grupos sociais em determinados contextos, a má-informação está relacionada ao compartilhamento de conteúdos equivocados ou descontextualizados, sem dolo específico de gerar caos, muitas vezes na forma de conteúdos legítimos circulados fora de contexto ou para legitimar um conjunto de crenças pessoais. Essas diferenças são delineadas pela combinação de veracidade, intencionalidade e contexto de uso, categorias relevantes para uma análise jurídica do fenômeno. 

Claro que, nessa divisão, há desafios na compreensão do dolo, da intencionalidade por trás da produção do conteúdo, mas autores como Recuero (2024) e Guess e Lyons (2020) apontam que esta identificação pode ser percebida no objeto em si. Na prática, um conteúdo criado para desinformar (como aqueles que, durante a pandemia, associavam vacinas ao surgimento de doenças) é diferente de outros gerados como sátira (como vídeos debochando da resistência do governo em adquirir vacinas) ou crítica (como artigos desaprovam a atuação do STF na regulação da distribuição dos insumos durante a pandemia). Compreendendo a diferença entre informação legítima, má-informação e desinformação, os operadores do direito poderão aplicar a resposta legal e regulatória apropriada, se for o caso.

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Discutir o enfrentamento aos conteúdos desinformativos não passa pela disputa do que é verdade, mas pela compreensão do que é legítimo (no sentido de alinhado com os valores legais e constitucionais brasileiros) e do que é produzido para fomentar o caos e gerar desestabilidade. Se existe um consenso entre os estudiosos da desinformação é de que o problema precisa ser combatido de forma multidisciplinar e não será o direito, sozinho, que apresentará soluções.

A regulamentação das plataformas de rede social é apenas um dos passos para o enfrentamento desse fenômeno, é uma etapa para trazer as plataformas à sua responsabilidade social para a construção de um ambiente digital mais saudável. A resistência dessas empresas guarda muito mais relação com a falta de estímulos para investimento em ferramentas (que podem impactar negativamente os seus índices de performance econômica) do que na “defesa do exercício da liberdade de expressão dos usuários”. 

Para além da regulação, é preciso pensar em políticas públicas de educação para o consumo de mídia, planos de comunicação pública que se apropriem de tecnologias integradas à inteligência artificial para ajudar a circular informações legítimas e checagem de fatos, talvez integrando-se com agências e sistemas de jornalismo. Mais ainda, é preciso se afastar de uma perspectiva polarizada e reducionista que enxerga as pessoas que compartilham desinformação ou como bandidas ou como ingênuas em excesso, usando instrumentos como mapas de empatia e de jornada para compreensão do contexto desses indivíduos.

Em suma, combater a desinformação numa perspectiva jurídica exige não apenas o reconhecimento dos diferentes conceitos e categorias que envolvem o fenômeno, suas origens e impactos, mas também a identificação de suas dinâmicas específicas no ambiente socioeconômico contemporâneo. 


[1] HARARI, Yuval Noah. Nexus: Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial. Companhia das Letras, 1st ed., 2024.

[2] MELLO, Marcílio Barenco Corrêa de. The Information Access Law as a Full Constitutional Citizenship Instrument. In: IGI GLOBAL EBOOKS (Org.). Título da obra completa. 2021, p. 166-179. DOI: 10.4018/978-1-6684-3706-3.ch009

[3] ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.

[4] MAU (monthly active users/número de usuários ativos por mês) é uma medida de quantos usuários únicos interagem com uma plataforma durante um mês. Para plataformas, um MAU alto indica um público grande e engajado, atraente para anunciantes que desejam promover seus produtos ou serviços.

[5] RECUERO, Raquel. A rede da desinformação: Sistemas, estruturas e dinâmicas nas plataformas de mídias sociais. Editora Sulina. 2024.

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