Portaria SPA 1.475/24 compromete legalidade e estabilidade jurídica no setor de apostas

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A maneira como normas administrativas e leis ordinárias se relaciona é um tema sensível no ordenamento jurídico, especialmente quando essas normas regulamentadoras parecem extrapolar os limites estabelecidos pela legislação superior, incutindo tumulto e perturbando o sistema econômico. O escalonamento normativo é um princípio fundamental que assegura a coesão do sistema jurídico e impõe restrições claras ao poder regulamentar das autoridades administrativas.

A ausência de coesão no sistema legislativo traz insegurança jurídica. A exemplo do que ocorreu com o advento da Lei nº 14.790/23, que deu início à regulamentação das apostas esportivas (de quota fixa) em âmbito nacional.

Já focalizamos as consequências da limitação do mesmo grupo econômico operar em mais de um estado da federação ou na União Federal sob a ótica da law and economic, e os efeitos prejudiciais que essa limitação pode trazer aos estados da federação ante o possível desvio do Poder Legislativo. Recentemente o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, em decisão cautelar, entendeu que o artigo 35-A da Lei 13.756/18, incluído pela Lei nº 14.790/23, é inconstitucional[1].

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Recentemente a publicação da Portaria nº 1.475, de 16 de setembro de 2024 pela Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA) do Ministério da Fazenda, trouxe um novo debate relevante sobre a compatibilidade e necessidade de coesão no sistema jurídico ao reduzir o período de adequação das empresas em operação[2].

O problema surge a partir da leitura da Lei nº 14.790/23 que, ao atribuir ao Ministério da Fazenda a incumbência de regulamentar os requisitos para exploração de apostas de quota fixa no país, estabeleceu no artigo 9º, parágrafo único, que o prazo para adequação às novas condições não poderia ser inferior a seis meses.

A regulamentação destes requisitos veio por intermédio da Portaria nº 827, de 21 de maio de 2024, trazendo não somente as condições, mas o prazo para adequação das atividades às novas exigências: até 31 de dezembro de 2024, estando as empresas irregulares sujeitas a penalidades a partir de 1º de janeiro de 2025.

A publicação da Portaria nº 1.475 trouxe, de maneira abrupta, uma mudança que merece um olhar minucioso pois, ao impor restrições que não estavam previstas na Lei nº 14.790/23 (o prazo de adequação seria de, no mínimo, seis meses), alterou completamente o ambiente normativo no qual os agentes econômicos operavam, afetando a estabilidade jurídica e econômica das empresas envolvidas.

A controvérsia surge a partir do momento em que a portaria administrativa altera o prazo e impõe um marco temporal que não encontra respaldo no texto legal – indícios de clara extrapolação do seu poder regulamentar e inovação indevida na ordem jurídica. No ordenamento brasileiro, o poder regulamentar é conferido a autoridades administrativas para que detalhem e implementem mecanismos para exercício de direitos concedidos por normas superiores, mas sem a prerrogativa de criar obrigações, limitações ou direitos que não estejam expressamente estabelecidos pela legislação[3].

Essa controvérsia demonstra um problema recorrente: a utilização de normas inferiores para restringir ou modificar direitos conferidos pela lei. Não se trata de apego, mas de exigência fundamental para a estabilidade jurídica: é necessário que a hierarquia das normas seja respeitada, de forma a garantir que os agentes econômicos possam atuar com previsibilidade e segurança, especialmente no que concerne aos investimentos e à continuidade das suas operações. Sem essa observância, cria-se um ambiente de incerteza que compromete a confiança nas regras e a proteção dos recursos alocados.

No caso da Portaria nº 1.475/24, a restrição do prazo de adequação representa um desrespeito ao princípio da legalidade e da hierarquia das normas, além de afetar diretamente a segurança jurídica dos operadores de apostas de quota fixa. A Lei nº 14.790/23, ao conceder um prazo mínimo de seis meses para a regularização das empresas, buscou conferir previsibilidade e estabilidade ao mercado.

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A questão vai além de um simples desrespeito formal à hierarquia das normas. Ela implica uma interferência na continuidade das operações e no equilíbrio concorrencial do mercado. A limitação imposta pela Portaria nº 1.475/24 gera um tratamento desigual entre empresas que não conseguiram apresentar seus pedidos de autorização antes da publicação da norma, criando um obstáculo injustificado à exploração de uma atividade regulamentada como serviço público. Dessa forma, além de afrontar o princípio da legalidade, a portaria viola também o princípio da livre concorrência, que é um pilar da ordem econômica conforme estabelecido pela Constituição Federal.

O novo capítulo de conflito legislativo decorrente da aplicação das novas diretrizes no setor de apostas exemplifica um problema clássico do Direito Administrativo brasileiro: a extrapolação do poder regulamentar por normas inferiores. Esse problema traz uma série de consequências negativas para o próprio objetivo buscado com a criação da norma: tornar o ambiente negocial mais atrativo a investimentos e regulamentar o funcionamento de uma atividade que carece de maior atenção do Poder Público. A mudança abrupta de regras tem o potencial de afastar investidores de um setor promissor para a economia.

Como se vê, a criação de normas jurídicas tem impacto fundamental na economia. Não basta simplesmente legislar:  essa atividade exige atenção  aos preceitos jurídicos anteriores e, mais do que nunca, aos efeitos decorrentes da regulamentação.


[1] Trecho da decisão proferida em 23.10.2024 na ADI n.º 7640:

“Conforme consignei no voto de mérito que proferi na presente ação, o Plenário deste Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADPF´s 492 e 492 e da ADI 4.986, assentou que os Estados têm, em concorrência com a União, competência material para a exploração dos serviços públicos de loteria e que a União, no exercício de sua competência legislativa privativa sobre a matéria, não pode instituir tratamento diferenciado entre os entes federativos, privilegiando determinados Estados em detrimento de outros ou privilegiando a si própria em detrimento dos Estados-membros.

À luz dessa premissa fundamental e forte na consideração de que por força dos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, o exercício de atividades econômicas por particulares deve ser protegido da coerção arbitrária do Estado, assentei meu entendimento de que a restrição constante do §2º do art. 35-A da Lei nº 13.756/2018 (incluído pela Lei nº 14.790/2023)- que, repita-se, impede que um mesmo grupo econômico ou pessoa jurídica celebre contrato de concessão de serviços lotéricos em mais de um Estado-membro- não encontra amparo na Constituição, seja porque não se encontra prevista no art. 175 da CF, seja porque acaba por impor aos Estados de menor população a celebração de contratos de concessão com empresas tendencialmente menos qualificadas, violando claramente o pacto federativo.

[…]

Saliento no ponto circunstância que procurei minudenciar no voto de mérito que submeti ao Plenário da Corte na presente ação: a exploração dos serviços de loteria pela União constitui atualmente importante meio de obtenção de recursos que se destinam ao atendimento de diversas demandas sociais de alta relevância. À luz da ideia de federalismo fiscal, não pode a União impor obstáculos ao pleno exercício de competências arrecadatórias dos Estados, sobretudo à míngua de qualquer justificativa razoável, como no caso concreto.”

[2] Art. 2º Para fins do disposto no art. 9º, parágrafo único, da Lei nº 14.790, de 29 de dezembro de2023, e aplicação do previsto no art. 24 da Portaria SPA/MF nº 827, de 21 de maio de 2024, consideram-se em período de adequação, a partir de 1º de outubro de 2024, apenas pessoas jurídicas em atividade que tiverem apresentado o requerimento de autorização ao Ministério da Fazenda até a data de publicação desta Portaria.

[3] Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que “o regulamento não pode contrariar ou ir além da lei; sua função é subordinada à lei e, por isso, deve conformar-se aos princípios e normas estabelecidos pelo legislador. […] A função regulamentar é a de meramente explicitar e desenvolver os contornos já estabelecidos pela norma superior, não podendo inovar na ordem jurídica” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 33ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016).

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