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Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

Precedentes vinculantes e IA: uma nova era da jurisprudência criativa?

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O JOTA, na última quarta-feira (22/1) noticiou uma situação inusitada.

Em São Paulo, um advogado pediu ao TJSP que uma sentença fosse anulada porque teria sido redigida por meio de inteligência artificial (IA). Sedutora, a tese não convenceu os desembargadores. 

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Ao afastar o argumento de que a decisão representaria uma violação ao princípio do juiz natural, o tribunal afirmou que deveria haver “indícios reais de uso antiético da tecnologia”. 

O curioso é que a sentença, segundo a hipótese sustentada, teria sido submetida à análise do próprio ChatGPT, que constatou uma probabilidade “média à grande” do uso de IA.

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Factual ou especulativo, o episódio, além do debate sobre aspectos morais e éticos, permite a formulação de outra hipótese: de que a cultura dos precedentes vinculantes pode ser reforçada pela utilização de ferramentas de inteligência artificial.   

Os precedentes representam uma das respostas do sistema de justiça à crise da legalidade. O colapso do cânone liberal propiciou a organização do direito a partir da transferência de funções criativas ao juiz – daí o uso de expressões como jurisprudência criativa, direito judicial e direito jurisprudencial.

É sob essa perspectiva que se vive, hoje, aquilo que Ran Hirschl, em Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitucionalism, cunhou como juristocracia

A juristocracia abarca a transferência do poder das instituições que incorporam a democracia representativa para o Poder Judiciário – a revolução secreta de que fala Bernd Rüthers. Descortina um movimento anômalo que ocorre quando um sistema parlamentar se transmuda em uma plataforma na qual os juízes não são apenas quem decide com base no direito, mas também quem o cria.

Os precedentes formalmente vinculantes são regulados pelo Código de Processo Civil. Sua racionalidade parte da ideia de que há “cortes de vértice” das quais depende a uniformização da interpretação do direito. Sua lógica se preocupa com a implementação de mecanismos de controle sobre a uniformidade das decisões judiciais.

Os precedentes se defrontam com problemas metodológicos e epistemológicos, em especial quando o seu cabimento, viabilidade e aplicabilidade são colocados à prova no espinhoso campo do processo penal. 

Nesse campo do saber, o princípio da legalidade se reveste de tintura garantista. Embora seja firme a tendência contemporânea à formação de microssistemas penais e à descodificação e administrativização do direito penal como efeitos deletérios do processo de fragmentação legislativa, autores como Hermes Zanetti Jr. (O valor vinculante dos precedentes: teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes) defendem a impropriedade de uma teoria dos procedentes para o processo penal.

O risco de se confiar em precedentes para superar a crise do princípio da legalidade é abalar as estruturas de garantias fundamentais – gestadas pelo iluminismo liberal – desse particular ramo do saber jurídico.

Para a jurista italiana Elena Maria Catalano (Giurisprudenza creativa nel processo penale italiano e nella common law: abnormità, inesistenza e plain error rule), a usurpação das funções legislativas pela jurisprudência viola o princípio da legalidade e é capaz de produzir efeitos disruptivos. Esses efeitos abarcam tanto as relações entre a produção e a aplicação de normas jurídicas (entre a lei e o juiz como fonte privilegiada de direito), quanto o fenômeno que pode ser chamado de “dialética interna da jurisprudência” e que compreende as relações entre os diferentes pronunciamentos judiciais e a autoridade dos precedentes. 

Hoje, o poder do conhecimento foi repaginado pela big data. As sociedades estão imersas nas brumas daquilo que James Bridle chama de “a Nova Idade das Trevas”: “uma era na qual o valor que depositamos no conhecimento é aniquilado pela abundância desse produto rentável, e na qual procuramos em nós mesmos novas maneiras de entender o mundo.” Embora a crença de que “quanto mais dados, melhor” tenha se tornado o norte da era da informação, suas consequências para o direito já se fazem notar e levantam questionamentos importantes. 

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Quando até o Tribunal Penal Internacional (TPI) participa ativamente da revolução digital na investigação de crimes graves, estabelecendo um novo modelo que utiliza algoritmos para gerenciar provas, a era da inteligência artificial se acopla a um novo ambiente de aplicação do direito: o sistema de precedentes obrigatórios, que almeja otimizar a eficiência numérico quantitativa da jurisdição. 

Já há, inclusive, projetos de inteligência artificial do Judiciário brasileiro que reúnem esses dois grandes temas, como a ferramenta MARIA, implementada pelo STF no final de 2024. 

Acrônimo de “Módulo de Apoio para Redação com Inteligência Artificial”, MARIA é um sistema que usa a inteligência artificial generativa para auxiliar na produção de minutas de ementas, com o resumo do entendimento dos ministros sobre os temas, e de relatórios em recursos extraordinários e em recursos extraordinários com agravo, além de realizar a análise inicial de processos de reclamação.

Agora, ao ceticismo sobre a compatibilidade entre o raciocínio jurídico e a reprodução realizada por sistemas de inteligência artificial, soma-se outro aspecto da perplexidade sobre a conhecida “caixa-preta algorítmica”. 

Isso porque há sérias dúvidas acerca do que Debora Bonat e Fabiano Peixoto (Racionalidade no direito: inteligência artificial e precedentes) denominam de “sistema de precedentes tropicalizado”: afinal de contas, seria possível utilizar a IA em uma nova forma de aplicação do direito, baseada na utilização da ratio decidendi de um caso anterior e que, por conta da legislação brasileira, acaba por vincular todos os casos posteriores? 

O entrelaçamento entre as duas categorias – precedentes e IA – já está em curso. Se o direito sucumbirá ou se adaptará a essa nova realidade, em uma nova era da jurisprudência criativa, é pergunta para o futuro. 

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Referências

BONAT, Debora; PEIXOTO, Fabiano Hartmann. Racionalidade no direito: inteligência artificial e precedentes. Curitiba: Alteridade Editora, 2020.

BRIDLE, James. A nova idade das trevas: a tecnologia e o fim do futuro. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2019.

CATALANO, Elena Maria. Giurisprudenza creativa nel processo penale italiano e nella common law: abnormità, inesistenza e plain error rule. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, anno XXXVIII, fasc. 1, p. 299-321, 1996.

HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitucionalism. London: Cambridge: Harvard University Press, 2004.

RÜTHERS, Bernd. La revolución secreta: del estado de derecho al estado judicial: un ensayo sobre constitución y método. Madrid: Marcial Pons, 2020, p. 11-27.

ZANETI JR. Hermes. O valor vinculante dos precedentes: teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes. 5. ed. São Paulo: JusPodivm, 2021.

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