Precificação dinâmica e danos ao consumidor

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Como estratégia que envolve ajustar preços de produtos ou serviços rapidamente – a frequência pode ser de várias vezes no mesmo dia ou até na mesma hora – a precificação dinâmica vem se tornando prática cada vez mais comum. Por meio do acesso ao big data e com base em algoritmos potentes, empresas podem alterar rapidamente seus preços diante de fatores como modificações na demanda, variáveis competitivas, características ou hábitos dos consumidores e até mesmo o período do dia.

Sob essa perspectiva, a precificação dinâmica – dynamic pricing –pode ser considerada gênero de algumas espécies famosas, como o surge pricing, adotado pela Uber, que se baseia na alteração de preços em resposta a uma crescente demanda por serviços quando a oferta é limitada. O que caracteriza a precificação dinâmica é a amplitude e variedade de parâmetros que podem ser utilizados para a alteração de preços.

Se a precificação dinâmica estava associada anteriormente a alguns mercados mais específicos – como hotéis, passagens áreas e aplicativos de transporte – progressivamente está se alastrando para o varejo, havendo grandes agentes do setor, como Walmart e Amazon, que já a aplicam reiteradamente. Recente reportagem do Financial Times (The rise of surge pricing: it will eventually be everywhere)[1] mostra que a Amazon muda o preço dos seus produtos em média a cada 10 minutos.

Aliás, a Amazon foi recentemente processada pela Federal Trade Comission nos Estados Unidos, sob o fundamento de ter lucrado 1 bilhão de dólares por meio de um algoritmo secreto de precificação que levou a aumentos indevidos de preços[2].

Nesse contexto, é fundamental entender como a precificação dinâmica vem sendo implementada e se, para além dos benefícios que normalmente lhe estão associados – como eficiências[3], racionalizações de recursos escassos pelas empresas e possibilidade de aumento da rivalidade por preço – há motivos para preocupações com danos aos consumidores que vão além das já constatadas possibilidades de colusão explícita ou tácita de preços entre os diversos agentes.

Já tive a oportunidade de mostrar como a soberania do consumidor vem se tornando uma grande falácia, sobretudo no mundo virtual[4]. Também já tive a oportunidade de mostrar os riscos – inclusive de discriminações ilícitas e abusivas – da precificação personalizada[5], ainda mais diante das inúmeras estratégias para explorar as limitações de racionalidade dos consumidores, dentre as quais as dark patterns[6].

Como se pode observar, a precificação dinâmica está igualmente relacionada à precificação personalizada, pois em muitos casos os fatores de diferenciação serão os hábitos ou características dos consumidores ao longo do tempo, explorados sem qualquer transparência quanto à diferenciação entre consumidores e quanto às razões da diferenciação. Em outras palavras, por meio da precificação dinâmica, as regras do jogo podem ser modificadas, com muita frequência e rapidez, sem que os consumidores sequer saibam.

Exatamente por estar baseada em um amplo acesso a informações, dentre as quais o quanto as pessoas estão dispostas a pagar por determinado bem ou serviço, é inequívoco o potencial de exploração dos consumidores decorrentes da precificação dinâmica. Isso é particularmente agravado no contexto de um capitalismo de vigilância, no qual ocorre a maciça extração de dados pessoais dos consumidores, muitas vezes sem o seu consentimento ou nem mesmo o conhecimento.

Assim, longe de serem uma consequência do maior talento ou habilidade das empresas para se anteciparem aos movimentos dos consumidores, o sucesso de muitos desses sistemas algorítmicos de precificação dinâmica decorre de práticas ilícitas – especialmente atentatórias à proteção de dados – e da exploração das vulnerabilidades e fragilidades dos consumidores.

Para além dos problemas aos consumidores, há que se verificar também os impactos concorrenciais de tais estratégias. Com efeito, embora os algoritmos de precificação supostamente ofereçam a possibilidade de uma competição quase que perfeita, na medida em que possibilitam às empresas reagir em tempo real aos preços de seus rivais, resta saber se, na prática, isso tem realmente acontecido em favor do consumidor – com a diminuição dos preços – ou está ocorrendo em detrimento deste – com o aumento de preços.

Em recente estudo, Zach Brown e Alexander MacKay[7] mostraram que, em um cenário de equilíbrio competitivo, a introdução de algoritmos de precificação pode aumentar os preços, permitindo que as empresas cobrem valores supracompetitivos ainda que na ausência de colusão. Alexandre MacKay e Samuel Weinstein[8] apontam para o fato de que a precificação dinâmica pode levar a preços mais caros para o consumidor mesmo em mercados competitivos sem colusão, colocando as empresas em situação de extrema vantagem e possibilitando a estas extrair uma massiva quantidade de riqueza dos consumidores.

Para MacKay e Weinstein[9], uma das explicações para esse cenário é que as empresas que detêm melhor tecnologia podem atualizar preços mais rapidamente que as outras, o que se torna uma vantagem competitiva para elas e um desincentivo para que empresas menores possam rivalizar por preço. Já a empresa mais forte pode fixar o preço abaixo do preço do rival, mas ainda assim com margens supracompetitivas. Consequentemente, o resultado dessa frequência de precificação é que tanto as empresas mais fortes como as mais fracas acabam cobrando preços supracompetitivos, em prejuízo do consumidor.

Tal preocupação é compartilhada por Ramsi Woodcock[10], para quem as empresas atualmente se engajam na precificação dinâmica não porque a prática é melhor para racionalizar acesso a recursos escassos, mas sim para cobrar preços maiores. Para o autor, a precificação dinâmica pode até ser boa quando as firmas a usam como reação para a baixa demanda. Entretanto, quando empregada em resposta a aumentos inesperados de demanda, a precificação dinâmica sempre prejudica consumidores, drenando recursos destes para as empresas.

Outro fator a ser levado em consideração nessa análise diz respeito à transparência e à capacidade dos consumidores para entender essa nova dinâmica de precificação. Não é sem razão que estudo canadense[11] mostra que (i) os consumidores ainda têm pouca consciência da precificação baseada no seu comportamento ou nos seus dados pessoais e tendem a ter reações negativas quanto têm esse conhecimento e (ii) os benefícios de tais práticas são normalmente atribuídos aos consumidores que têm tempo, diligência e perspicácia.

Em sentido próximo, a OCDE, em estudo realizado sobre precificação personalizada[12], reconhece que o propósito da prática é fixar preços em função da vontade do consumidor de pagar por aquele produto, o que geralmente pode ter efeitos positivos eu aumentos de eficiência, mas tem efeitos dúbios sobre a distribuição dos benefícios entre firmas e consumidores.

Logo, há boas razões para se refletir sobre as consequências nefastas da precificação dinâmica, especialmente quando for personalizada, e o que poderia ser feito para resolvê-la. Nesse sentido, Ramsi Woodcock[13] sustenta que tal prática, quando implementada por agentes com posição dominante, poderia ser considerada como ilícito per se à luz do Sherman Act. Embora o autor reconheça que o Direito Antitruste normalmente não investiga esse tipo de conduta, considera que é clara a ilicitude em razão dos danos aos consumidores, razão pela qual a prática deveria ser proibida.

Já Alexandre MacKay e Samuel Weinstein[14] entendem que, fora das hipóteses de colusão, o Antitruste não poderia resolver o problema, motivo pelo qual deveríamos evoluir para uma regulação da precificação algorítmica que impeça essa extração de riqueza dos consumidores.

Dentre as alternativas regulatórias sugeridas pelos autores, estão a de limitar ou proibir a frequência de precificação assimétrica, como aconteceria por meio de uma regra que obrigasse agentes econômicos a precificar sempre no mesmo horário. Com isso, seria eliminada a conduta de seguir o líder e outras estratégias que possibilitam que todos de um mercado cobrem preços supracompetitivos. Outra opção regulatória seria proibir que as firmas incorporassem os preços dos rivais em seus algoritmos.

No que diz respeito à precificação personalizada, a OCDE[15] considera que reguladores podem reduzir o risco de dano aos consumidores por meio de ferramentas que assegurem que tais práticas sejam transparentes, consentidas pelo consumidor e suscetíveis de opt out. Embora a OCDE considere a possibilidade de se utilizar o Direito Antitruste em algumas jurisdições, ressalva que a solução mais efetiva para a precificação personalizada seria o Direito do Consumidor, conjugado com a legislação de proteção de dados pessoais e a legislação anti-discriminação.

Como se pode observar, a questão da precificação dinâmica apresenta grande potencial de danos aos consumidores. Do ponto de vista econômico, a prática, sob várias perspectivas, pode distorcer o mecanismo de preços ou torná-lo desequilibrado em favor das empresas, impedindo que os mercados façam a sua “mágica”, como diria Friedman.

Já do ponto de vista jurídico, a precificação dinâmica envolve necessariamente discriminações, deflagrando a discussão de saber em que medida a prática não é contrária aos princípios de proteção do consumidor, dentre os quais o de ser tratado isonomicamente. Com efeito, como sustenta Rana Foroohar[16], o que é ilegal no mundo físico também deveria sê-lo no mundo virtual, razão pela qual seria fundamental implementar também neste último um princípio de não discriminação.

No Brasil, além da Lei Antitruste, que incide sobre qualquer abuso de posição dominante contra consumidores, a prática ainda precisa ser submetida ao devido escrutínio à luz do CDC e da LGPD. Nesse sentido, há bons argumentos para se sustentar a impossibilidade da discriminação entre consumidores em mercados que não envolvam riscos personalizados e quando a diferenciação ocorre por motivos não objetivos, mas sim com base na exploração de dados pessoais – especialmente os sensíveis – dos consumidores.

Por mais que se possa pensar em regulações novas, especialmente em prol da implementação de medidas concretas de transparência, fato é que já temos no CDC e na LGPD um princípio que impossibilita discriminações abusivas. Consequentemente, é possível considerar como ilícita a precificação dinâmica que é feita sem o conhecimento ou consentimento do consumidor, sem possibilidade de opt out e ainda com base em dados pessoais – especialmente sensíveis – que ou não foram coletados legalmente ou estão sendo utilizados para finalidades outras que não as que justificaram a sua coleta.

Diante da importância crescente do assunto, está mais do que na hora de se pensar na precificação dinâmica não apenas a partir da lógica da eficiência, mas também a partir da lógica do cumprimento de direitos essenciais de consumidores e titulares de dados pessoais.

[1] https://www.ft.com/content/d0e3bcb5-b824-414e-bfac-4c0b4193e9f0

[2] https://www.reuters.com/legal/new-details-ftc-antitrust-lawsuit-against-amazon-made-public-2023-11-02/

[3] Sobre eficiências, ver estudo de CHEN, Nan; JEZIORSKI, Przemyslaw. (Consequences of dynamic pricing in competitive airline markets. https://www.google.com/search?client=safari&rls=en&q=CHEN%2C+Nan%3B+JEZIORSKI%2C+Przemyslaw.+Consequences+of+dynamic+pricing+in+competitive+airline+markets.&ie=UTF-8&oe=UTF-8) sobre eficiências no mercado de companhias aéreas.

[4] Ver FRAZÃO, Ana. Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/o-mito-da-soberania-do-consumidor-01122021; https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/falacia-soberania-do-consumidor-08122021.

[5] Ver FRAZÃO, Ana. Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/falacia-soberania-do-consumidor-08122021.

[6] Ver FRAZÃO, Ana. Jota.  https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/o-que-sao-dark-patterns-12072023. Ver também podcast Direito Digital, com Ana Frazão e Caitlin Mulholland. Arquitetura das plataformas digitais. Disponível nos principais tocadores.

[7] BROWN, Zach Y., and MACKAY, Alexander. 2023. Competition in Pricing Algorithms. American Economic Journal: Microeconomics, 15 (2): 109-56.DOI: 10.1257/mic.20210158. https://www.aeaweb.org/articles/pdf/doi/10.1257/mic.20210158

[8] MACKAY, Alexander; WEINSTEIN, Samuel. Dynamic Pricing Algorithms, Consumer Harm, and Regulatory Response, 100 Washington University Law Review. 111 (2022). https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3979147

[9] Op.cit.

[10] WOODCOCK, Ramsi. Que Efficient Queue and the Case Against Dynamic Pricing. University of Kentucky. Law Faculty Scholarly Articles, 695. https://uknowledge.uky.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1697&context=law_facpub

[11] CANADA – Consumers Council. Can Consumers achieve the benefits they expect https://www.consumerscouncil.com/wp-content/uploads/sites/19/2020/03/809323_ccc_dynamic_pricing_final_report_web.pdf

[12] OCDE. Personalised pricing in the digital era. https://www.oecd.org/competition/personalised-pricing-in-the-digital-era.htm

[13] Op.cit.

[14] Op.cit.

[15] Op.cit.

[16] FOROOHAR, Rana. To surge or not to surge. The algorithm is the question. Financial Times. https://www.ft.com/content/3501800d-c1b1-410b-98d6-5c066c612f29

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