Preservar para evoluir: Marco Civil e o futuro do ecossistema digital

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Nesta quarta-feira (27), o Supremo Tribunal Federal poderá alterar profundamente o equilíbrio do ambiente digital brasileiro. Não é exagero: o julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet definirá como lidaremos com conteúdos problemáticos nas redes sociais nos próximos anos, e pode desencadear efeitos em cadeia em todo ecossistema online.

A decisão terá impacto direto não apenas para as grandes plataformas, mas também para startups, influenciadores digitais e, principalmente, sobre a liberdade de expressão de usuários e usuárias na internet.

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Para entender a dimensão do caso, o RegLab realizou um dos maiores levantamentos já feitos sobre um processo do STF. Realizamos uma análise sistemática de conteúdo em uma verdadeira ecologia de 87 documentos, incluindo 46 manifestações em audiências públicas, mapeando quase 400 argumentos de 56 entidades.

Essa abordagem metodológica permitiu identificar não apenas as posições dominantes, mas também nuances e tendências emergentes, e os resultados revelam muito sobre a emergência climática do julgamento.

O artigo 19 estabelece que plataformas digitais só podem ser responsabilizadas por conteúdo de terceiros se não cumprirem uma ordem judicial de remoção. É o chamado “judicial notice and takedown“, modelo que foi adotado após intensos debates durante a elaboração do Marco Civil da Internet, sendo considerado um equilíbrio entre a necessidade de combater conteúdos ilícitos e a proteção da liberdade de expressão.

Celebrado na época de sua publicação em 2014, o modelo brasileiro foi considerado uma referência global e estabeleceu o país como líder na governança da internet. No mesmo ano, em novembro, uma ação judicial em Capivari (SP) sobre a remoção de um perfil falso no Facebook iniciou o primeiro grande teste do Marco Civil.

Um ano depois, quando o TJSP decidiu contra a empresa, declarando o art. 19 inconstitucional, o Facebook recorreu ao STF que, em 2018, elevou o caso a um leading case de repercussão geral — ou seja, os efeitos de seu julgamento serão aplicados a casos semelhantes em tribunais de todo o Brasil.

Além das empresas do setor, dezenas de associações de defesa de direitos digitais e centros de pesquisa acadêmica contribuíram como amici curiae no processo, participando também de dois dias de audiências públicas promovidas pelo STF, em 2023. O mais interessante? A sociedade civil e a academia, geralmente críticas às big techs, majoritariamente defenderam a constitucionalidade do artigo. E não por acaso: segundo o estudo do Reglab, os defensores da constitucionalidade apresentaram a maior diversidade de argumentos, com boa base empírica.

Do outro lado, argumentos pela inconstitucionalidade foram menos variados e raramente trouxeram dados concretos. Setores como radiodifusão e mídia impressa aproveitaram o debate para discutir concorrência com plataformas digitais – uma pauta legítima, mas que não faz parte do cerne da questão.

Mas o debate e o ecossistema da internet evoluíram. Hoje, além das posições tradicionais, surge uma nova espécie, a possibilidade de “interpretação conforme a Constituição” – que representou 25% das manifestações e surgiu com força a partir de 2023, após os ataques de 8 de janeiro.

A “interpretação conforme” surge como uma tentativa de adaptação evolutiva: uma mutação artificial do sistema atual, provocada pelo STF, para sobreviver às novas ameaças da fauna digital. A ideia é preservar o artigo 19, mas adaptar sua interpretação para exigir ação mais rápida das plataformas em casos específicos – semelhante ao que já ocorre com conteúdos de direito autoral e fotos íntimas sem consentimento, exceções previstas no art. 21.

Contudo, algumas propostas de “interpretação conforme” são preocupantes. Criar obrigações procedimentais detalhadas ou estabelecer deveres genéricos de cuidado pode gerar insegurança jurídica tão prejudicial quanto a declaração de inconstitucionalidade. O próprio argumento de que o “dever de cuidado” é algo que já existe na União Europeia é, além de revelar tendências colonialistas, falacioso: por lá, essas obrigações existem para conter violações em massa de direitos, e não para julgar casos individuais e específicos.

O caminho mais prudente seria manter a estrutura do artigo 19, que se mostrou resiliente e democrática, estabelecendo exceções específicas, objetivas e limitadas a casos verdadeiramente graves, como terrorismo, grave atentado ao Estado de Direito, ou incitação ao suicídio. Questões envolvendo honra e reputação, por exemplo, devem permanecer sob o regime atual, com o objetivo de preservar a liberdade de expressão e a legitimidade do Judiciário para casos complexos.

A evolução natural da internet mostra que intervenções artificiais, fragmentadas, tendem a desequilibrar o ecossistema. Precisamos de mecanismos regulatórios que evoluam organicamente através do debate democrático – como o Marco Civil, fruto de um processo colaborativo. A pesquisa do RegLab demonstra que o artigo 19 possui essa característica adaptativa: é uma norma que evolui e se adapta a diferentes demandas sem perder sua função essencial no sistema.

Agora, o STF enfrenta o desafio de qualquer guardião de um ecossistema complexo: encontrar o ponto ideal de intervenção, sem causar desequilíbrios em cadeia nem impedir a adaptação natural do sistema. O futuro do ambiente digital brasileiro depende dessa calibragem.

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