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Desde o advento da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943, a organização produtiva brasileira e global mudou profundamente. Se, à época, o trabalho nas fábricas era predominante, hoje os serviços detêm protagonismo. Some-se a isso as transformações tecnológicas, que viabilizaram, por exemplo, o trabalho autônomo intermediado por plataformas digitais – realidade inimaginável na década de 1940.
Essa nova realidade, potencializada pela disrupção tecnológica e entrada das novas gerações no mercado de trabalho, leva à necessidade de se repensar o Direito do Trabalho para além da tradicional relação de emprego.
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Não se trata de negar o modelo de proteção ao trabalhador subordinado hipossuficiente, assegurado pela CLT. Importa reconhecer que o vínculo de emprego não é um modelo universalmente aplicável, notadamente em vista do dinamismo social em que vivemos. Há outros modelos jurídicos, igualmente lícitos, que também regulam certas formas de prestação de serviços.
Vale dizer, a prestação de serviços independentes, quando realizada com autonomia, não é e nem deve ser regida pela CLT. Além disso, a subordinação, tida como elemento seguro e definitivo para enquadramento da relação empregatícia, não é por si só decisiva. Há contratos comerciais que também implicam certo grau de subordinação, com respaldo legal, sem que isso afaste sua natureza mercantil. É o caso das franquias, por exemplo.
Isso significa que nem todas as relações envolvendo contratos de prestação de serviços são regidas pelo Direito do Trabalho ou, menos ainda, têm natureza empregatícia. Existem relações civis e mercantis juridicamente válidas, que não devem ser presumidas fraudulentas, salvo prova em contrário.
É o que se verifica com corretores de seguros (Lei 4.594/1964), representantes comerciais autônomos (Lei 4.886/1965), corretores de imóveis (Lei 6.530/1979), prestadores autônomos de serviços intelectuais (Lei 11.196/2005), transportadores autônomos de cargas (Lei 11.442/2007) e franqueados (Lei 13.966/2019), entre outros.
Estas e outras modalidades de trabalho vinculam-se ao Direito Comum e devem, portanto, ser interpretadas à luz dos respectivos princípios. Especificamente na parte dedicada aos contratos, o Direito Civil é regido por quatro princípios fundamentais: autonomia da vontade, consensualismo, força obrigatória e boa-fé. A Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) consagrou também o princípio da intervenção subsidiária e excepcional do Estado nas relações privadas.
A limitação à autonomia da vontade, típica do direito individual do trabalho, só tem razão de ser em relações envolvendo trabalhadores hipossuficientes. Tratando-se de profissional hipersuficiente – aquele com diploma de nível superior e salário igual ou maior que duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social – a própria legislação trabalhista legitima a pactuação de cláusulas contratuais outrora reservadas à negociação coletiva.
Toda e qualquer relação, seja de emprego, seja comercial ou mercantil, possui vantagens e desvantagens: de um lado, há o 13º salário e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), por exemplo; de outro, o regime de tributação menos oneroso e flexibilidade no trabalho. Não é admissível que o prestador de serviços hipersuficiente, no momento da contratação, queira beneficiar-se das vantagens inerentes a certo modelo contratual, e, em momento posterior, pleiteie em juízo vantagens típicas do contrato de emprego, com desprezo ao princípio da boa-fé contratual.
Essa leitura social vem norteando boa parte das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em matéria trabalhista, nos últimos anos. Em 2018, no julgamento do RE 958.252 (Tema 725) e da ADPF 324, a Corte reconheceu a constitucionalidade da terceirização, independentemente de se tratar de atividade-meio ou fim, e declarou a inconstitucionalidade de parte da Súmula 331, do TST.
No acórdão, o Supremo registrou que, a despeito da jurisprudência do TST, a terceirização jamais foi vedada pelo ordenamento jurídico brasileiro. E não foi somente isto. À luz das novas modalidades de trabalho, o STF fixou tese jurídica quanto à licitude de “qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas” (Tema 725), abrindo espaço para contratações via pessoa jurídica.
Em 2020, o STF julgou a ADC 48 e a ADI 3961 (apensada), declarando constitucional a Lei 11.442/2007, que regula o transporte rodoviário de cargas por conta de terceiros. Na decisão, a Corte reforçou entendimento de que a Constituição Federal jamais vedou a terceirização, independentemente de tratar-se de atividade-meio ou fim.
Diante disso, constou da parte final da tese jurídica firmada que, uma vez preenchidos os requisitos previstos na Lei 11.442/2007, as relações decorrentes do contrato de transporte de cargas têm natureza comercial ou empresarial, e não empregatícia.
Também em 2020, o Supremo julgou procedente a ADC 66, reconhecendo a constitucionalidade do artigo 129, da Lei 11.196/2005, que autoriza a aplicação da legislação previdenciária e fiscal típica das pessoas jurídicas aos prestadores de serviços intelectuais. No julgamento, a Corte reforçou o quanto decidido na ADPF 324 e no RE 958.252 (Tema 725).
Nesses e em tantos outros casos recentes, a jurisprudência da Suprema Corte reconheceu que são legítimos os contratos civis e mercantis envolvendo prestação de serviços em regime não empregatício. A relação de emprego somente pode ser reconhecida quando não preenchidos os requisitos da referida lei ou quando o contrato firmado apresentar mácula a fulminar sua validade.
Portanto, antes de analisar a presença ou ausência em concreto dos pressupostos da relação de emprego, previstos nos artigos 2º e 3º da CLT (pessoalidade, subordinação jurídica, onerosidade e não eventualidade), deve-se analisar a validade do contrato comercial empresarial firmado pelas partes.
No entanto, percebe-se na Justiça do Trabalho relevante corrente jurisprudencial que insiste na visão de que prestações de serviço não celetistas são eminentemente fraudulentas, devendo-se presumir subordinação. Ante as reiteradas decisões trabalhistas que desafiam a jurisprudência vinculante do STF, tornou-se cada vez mais frequente o ajuizamento de Reclamações Constitucionais.
Nestes julgamentos, os ministros do STF têm reforçado o efeito vinculante de suas decisões e reiterado o entendimento quanto à legalidade da prestação de serviços por pessoa jurídica, notadamente em se tratando de trabalhadores que, se empregados fossem, seriam considerados hipersuficientes.
O STF também vem reconhecendo outras formas de prestação de serviços, como contratos de associação (de advogados e de corretores imobiliários, por exemplo), de parceria (salões de beleza) e de franquia, entre outros.
Alinhados à lógica da liberdade econômica, consagrada pela Constituição e, mais especificamente, pela Lei de Liberdade Econômica, mas sem perder de vista o valor social do trabalho, cabe aos agentes econômicos, entre diversas estratégias empresariais, definir regimes de regência de contratos de prestação de serviços, de natureza civil ou mercantil, quando se tratar de pessoas hipersuficientes, no vasto campo do empreendedorismo.
Restringir a autonomia da vontade de profissionais hipersuficientes e renegar contratos por eles firmados, ainda que juridicamente válidos, implica negar-lhes injustamente a possibilidade de buscar formas emancipatórias de prestar seus serviços.
Há um importante ajuste no paradigma que norteia a interpretação desses contratos não celetistas que possuem previsão legal: a presunção se opera em favor da validade do negócio jurídico, não contra ela. Havendo comprovada fraude, obviamente deverá ser declarada. Mas a prestação de serviços por pessoa jurídica não implica, por si só, fraude trabalhista. O modelo jurídico é, em si, legítimo.