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Originalmente prevista como uma medida excepcional, a prisão preventiva tem sido amplamente utilizada no Brasil como uma ferramenta quase automática na busca pela contenção de crimes.
Entretanto, o uso excessivo dessa medida vem alimentando o debate sobre a desnecessária antecipação da pena e seu efeito de inchaço carcerário.
Isso, porque com a aprovação do chamado “Pacote Anticrime” (Lei nº 13.964/2019), surgiram alterações no Código de Processo Penal, priorizando medidas cautelares alternativas à prisão, em um esforço para reduzir o encarceramento dito “interino” e, assim, assegurar o equilíbrio entre a proteção da ordem pública e os direitos individuais dos réus.
Nesse sentido, tem-se que a prisão preventiva é uma medida cautelar privativa de liberdade que visa garantir a ordem pública, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal, conforme o art. 312 do Código de Processo Penal (CPP).
“Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.”
“§ 1º A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares;”
“§ 2º A decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.”
Contudo, a míope ótica processual penal experimentada no Brasil demonstrou que essa medida – longe de ser exceção –, tornou-se uma prática rotineira. Tanto que dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2024, apontam que mais de 208 mil presos ainda aguardam julgamento. Ou seja, um a cada quatro encarcerados no país são presos provisórios; índice que representa 25%.
Claro que àqueles presos preventivamente – aqui objeto neste artigo –, estão incluídos a todos os outros que compõem o grupo de presos provisórios. Mas não se pode negar que, notadamente, tal quadro imprime as cores contidas no espectro da violação de direitos fundamentais, como a presunção de inocência e o direito à razoável duração do processo; ambos consagrados na Constituição Federal.
Feito esse “hiato de ponderação” – e por falar em cores –, as tintas dessa nociva “obra de arte” carregam outra realidade constrangedora: 69% de toda a população carcerária no Brasil é composta por negros; mais de 472 mil pessoas.
Com isso, emerge a necessidade de uma introspecção legislativa para se refletir acerca da chamada eficácia legal, numa espécie de “abordagem holística” sobre a prisão preventiva no Brasil. Visão holística cujo termo vem do Holismo, uma teoria filosófica que explica as relações entre os componentes de um “meio ambiente”, onde a forma de pensar e agir considera que o todo é mais do que a soma das partes e que, tais partes, estão interligadas.
Daí a imperiosa necessidade de buscar alternativas para este modelo de prisão. E foi com a promulgação do já citado “Pacote Anticrime”, que o legislador reforçou a utilização de medidas cautelares diversas da prisão preventiva, buscando, assim, reduzir o uso indiscriminado dessa última.
Bem verdade que o art. 319 do CPP já previu alternativas plausíveis em substituição da prisão preventiva sempre que as demais cautelares se mostrarem suficientes e adequadas para garantir a ordem pública ou assegurar o andamento regular do processo.
“Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:
I – comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades;
II – proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;
III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;
IV – proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução;
V – recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos;
VI – suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais;
VII – internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável e houver risco de reiteração;
VIII – fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;
IX – monitoração eletrônica.”
Inclusive, entre as inovações da mais recente (mas nem tão nova assim) legislação está a obrigatoriedade de fundamentação mais rigorosa para a decretação de prisão preventiva. Isso, porque desde 2019 a autoridade judicial deve expor concretamente os motivos que justificam a medida, além de demonstrar que outras cautelares não seriam eficazes no caso concreto (art. 282, § 6º, CPP). De certa forma, tal ponto impõe uma barreira maior à decretação de prisões “automáticas” ou desproporcionais.
Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a:
§ 6º A prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, observado o art. 319 deste Código, e o não cabimento da substituição por outra medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada.
Evidentemente, a expectativa com a nova legislação era de que a aplicação de medidas cautelares alternativas fosse mais frequente, especialmente em crimes de menor gravidade e em casos envolvendo réus primários. A ideia central era preservar a liberdade do acusado até que se tivesse uma decisão condenatória definitiva, protegendo, assim, o princípio da presunção de inocência.
Era, pois toda implementação enfrenta desafios significativos. Medidas como o monitoramento eletrônico dependem da existência de um sistema eficiente de controle e fiscalização, por exemplo; o que não é realidade em muitas regiões do país.
Além disso, a liberdade provisória, muitas vezes associada a uma percepção de impunidade, pode gerar pressão para a manutenção de uma cultura punitivista entre alguns atores da persecução penal.
Outro obstáculo é a falta de critérios objetivos para a escolha da medida cautelar mais adequada para cada caso. Embora o CPP estabeleça um rol de alternativas, a decisão final sobre sua aplicação depende da interpretação subjetiva do magistrado, o que pode resultar em desigualdades e incoerências na prática jurisdicional.
Tanto que tramita no Senado, o PL 226/2024 versando justamente sobre os critérios para a decretação de prisão preventiva. Essa iniciativa legislativa define quatro critérios que deverão ser ponderados pelo juiz a fim de avaliar a periculosidade do indivíduo detido, como: I) Modo de agir, com premeditação ou uso frequente de violência ou grave ameaça; II) participação em organização criminosa; III) natureza, quantidade e variedade de drogas, armas ou munições apreendidas; IV) ou possibilidade de repetição de crimes, em vista da existência de outros inquéritos e ações penais em curso.
Desta feita, espera-se que a aplicação efetiva das medidas cautelares alternativas à prisão preventiva possa representar um marco na busca pela redução do encarceramento provisório no Brasil lastreado pelo respeito às garantias processuais e aos direitos fundamentais dos acusados.
Afinal, embora haja mentalidade inquisitorial e, também, a garantista; o papel acusatório e o defensivo; só existe um Código de Processo Penal! Não aquele do que “eu acho que deveria ser”, mas o que contempla a verdade dos fatos e do Direito. De todos!
Thiago de Miranda Coutinho é graduado em Jornalismo, Direito e pós-graduado em Inteligência Criminal. Escritor e co-autor de livros é articulista nos principais veículos jurídicos do país, integrante do corpo docente de Academia da Polícia Civil de SC (Acadepol), palestrante e membro efetivo do Instituto dos Advogados de Santa Catarina (Iasc). No ano de 2021, foi condecorado pela Associação Brasileira das Forças Internacionais de Paz e, em 2023, recebeu Moção de Aplauso da Alesc. Recentemente, ganhou destaque nacional por ser o autor da sugestão legislativa de propositura de Projeto de Lei (apoiada pelo Conselho Federal da OAB em 2022), que visa incluir no Código Penal, qualificadoras a crimes praticados contra Advogados no exercício da função (PL 212/2024). Instagram: @miranda.coutinho_
Referências:
ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2024. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 18, 2024. ISSN 1983-7364. Disponível em: https://publicacoes.forumseguranca.org.br/items/f62c4196-561d-452d-a2a8-9d33d1163af0 . Acesso em: 15 out. 2024.
BRASIL. Projeto de Lei nº 226/2024. Altera o Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal) para dispor sobre os critérios para aferição da periculosidade do agente, geradora de riscos à ordem pública, para concessão de prisão preventiva, inclusive quando da audiência de custódia. Iniciativa do Senador Flávio Dino (PSB/MA). Disponível em: < https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/161996>. Acesso em: 15 out. 2024.
BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. Acesso em: 15 out. 2024.
RIBEIRO, Jorge Ponciano. Holismo, ecologia e espiritualidade: caminho de uma gestalt plena. São Paulo, Summus, 2009.
YUS, Rafael. Educação Integral: uma educação holística para o século XXI. Porto Alegre: Artmed, 2002.