‘Privatização’ de praias é só começo do ataque da direita contra a cidadania no Brasil

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A PEC 3/2022, que tramita no Senado, propõe que estados e municípios administrem praias — hoje sob a jurisdição da União — e eventualmente dá margem à privatização das mesmas, é apenas o primeiro passo rumo à explícita negação da cidadania no Brasil.

É o início de uma longa viagem ao passado liderada pela direita brasileira — em particular bolsonaristas, sejam eles assumidos ou enrustidos —, mas cujo ônus recairá sobre os mais pobres e minorias em geral. A relatoria é do “filho 01” do ex-presidente Jair Bolsonaro, o senador Flavio Bolsonaro (PL-RJ).

Conforme já havia escrito na encarnação anterior desta coluna no portal UOL, onde nos apresentávamos sob a alcunha de Entendendo Bolsonaro, o projeto de autointitulados liberais e herdeiros do fascismo é fazer o Brasil voltar à era republicana pré-1930. Trata-se de um período durante o qual, conforme as evidências históricas mais confiáveis demonstram, o poder estava descentralizado, nas mãos de oligarcas de influência regional. Ou seja, não tínhamos um verdadeiro Estado nacional, capaz de prevalecer sobre lobbies estaduais sem sufocar suas legítimas demandas, articulando, assim, as diversas ilhas nas quais estavam e até hoje estão divididas — ainda que em menor escala — a economia e a política brasileiras.

Nessa era, qualquer proposta de direito social era papo de comunista. Não é mera coincidência, portanto, que a atual direita brasileira — seja ela declaradamente extremista ou não — argumente o mesmo, pois questiona o papel do Estado na provisão da previdência social, ensino superior público (que podia ser cobrado até 1930), assistência à saúde universal e gratuita e até mesmo a existência da Justiça Eleitoral. Antes desta, aliás, a posse dos candidatos mais votados para o Legislativo ficava condicionada à aprovação da Comissão Verificadora de Poderes, formada por integrantes do próprio parlamento. A ela cabia fazer a degola, ou seja, a não confirmação da eleição de candidatos que não estavam alinhados às oligarquias.

Era a aporofobia — ojeriza aos pobres — e majoritarismo dos donos de terras e demais membros da elite sem pudores. Tal pensamento já tinha sido ressuscitado na questão das praias pelo então deputado federal Jair Bolsonaro em 2010, que, em discurso na Câmara dos Deputados, reclamou do excesso de pessoas de renda baixa nas praias do Rio de Janeiro. Considerando a pirâmide sociorracial do país, indiretamente o agora líder da extrema direita brasileira também criticou por tabela a quantidade de pretos e pardos nas areias cariocas.

Isso remete ao aspecto mais crucial do período pré-Getúlio Vargas: a nossa identidade nacional, que ignorava por completo o elemento africano e relegava a questão indígena a um segundo plano meramente sob a lógica do assimilacionismo ou sob a égide do pitoresco na cultura.

Sob a égide do despotismo esclarecido, Vargas, portanto, não liderou somente a consolidação do nosso Estado nacional, mas também deu forma institucional à ideia de Brasil que, com suas contradições, prevalece até hoje e abriu as portas para que, na Constituição de 1988, os direitos de minorias e a expansão do sufrágio aos analfabetos — em sua maioria não brancos — se concretizasse.

O bolsonarismo — e a julgar por falas ostensivamente preconceituosas de próceres do liberalismo à brasileira, também parte significativa da direita — quer substituir a nossa noção de identidade sincrética (sem dúvida eivada de hipocrisias, mas retoricamente inclusiva) pela noção de uma nação essencialmente cristã.

Nada mais distante do ponto de vista do lastro histórico em que qualquer narrativa de identidade nacional com um mínimo de credibilidade deve se estruturar, mas assaz sedutora para as pretensões dos que, em benefício próprio, misturam religião e política sem quaisquer pudores.

Se a referida PEC for aprovada, será prova de que o Legislativo brasileiro está dominado por Justos Veríssimos, personagem de Chico Anysio que era político e repetia o bordão “tenho horror a pobre”. Aporofobia é a verdadeira religião do bolsonarismo e da direita dita civilizada. Viraremos um país de maioria protestante sem o ascetismo dos que foram contra os excessos de Roma.

Se entre muitos à esquerda pode haver de fato um culto à pobreza, à direita exala-se uma ode à teologia da prosperidade dos pastores, temperada com a boçalidade dos novos ricos, que ostentam relógios caros nos pulsos, SUVs incompatíveis com o padrão de vida mesmo de classes médias altas e um cérebro vazio, expresso nos baixos índices de leitura que a nação ostenta.

O grupo Ultraje a Rigor, cujo líder Roger Moreira converteu-se à direita nos últimos anos, tinha nos anos 1980 entre os seus maiores sucessos a canção “Nós vamos invadir sua praia”. A direita brasileira não quer só invadir a nossa praia para satisfazer interesses privados, mas também busca colonizar nossas mentes e corações com um discurso alienador que promete liberdade embora entregue apenas subordinação a líderes oligárquicos, religiosos e milicianos.

Esses segmentos formam a base do bolsonarismo, o movimento sociopolítico cuja missão é construir uma ponte para o futuro que, todavia, dá passagem direta para um passado no qual mulheres, pessoas não brancas e pobres tinham muito menos participação na vida pública do país. Vende-se suposta modernidade com cheiro de naftalina. Sob o manto do liberalismo, embutem discriminação e exclusão.

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