No mundo atual, a percepção das dificuldades não pode mais se dissociar do remanejamento dos quadros funcionais.
Pensando mais a longo prazo, a percepção das dificuldades possibilita uma melhor visão global dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

pensamento do dia

Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

Propaganda eleitoral, polarização tóxica e as paródias

Spread the love

Recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tornou públicas as resoluções referentes às eleições de 2024, sendo uma delas sobre propaganda eleitoral (alteração da Resolução 23.610/2019). O texto traz importantes pontos, como o uso de inteligência artificial nas campanhas; o envolvimento de artistas e influencers nas campanhas; as deepfakes, dentre outros.

Um desses temas chama a atenção: as paródias na propaganda eleitoral (Art. 23-A da resolução). O ponto foi abordado durante as audiências públicas sobre as resoluções pela cantora Marisa Monte, que defendeu que é necessário que exista autorização para o uso de paródias durante as campanhas por parte das candidaturas e que a classe artística não fosse obrigada a se vincular a algo político, principalmente por poder haver discordância entre o que pensa o artista autor da obra parodiada e a plataforma defendida por quem encabeça a propaganda eleitoral.[1]

O tema em si não é novo. O debate já foi instaurado no caso do cantor Roberto Carlos e o então candidato Tiririca, em que se entendeu que o uso da paródia por parte da candidatura estaria albergada pela exceção do art. 47 da Lei 9.610/1998. A disputa judicial envolveu a gravadora do cantor, EMI, e o cantor diretamente,[2] tendo como cerne da questão tão só o uso de imagem para fins políticos sob o prisma do direito de personalidade à imagem, que gera dever de indenização.

Seguindo essa linha, o relator do caso no Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro-relator Marco Aurélio Bellizze, argumentou se o uso eleitoral da paródia é juridicamente relevante para entendê-la como ilícita. Segundo ele, “as propagandas são verdadeiras obras de arte, não se podendo ignorar a atividade criativa e inventiva que encerram, ainda que muitas vezes destinadas à promoção de produtos ou, no caso da eleitoral, de candidatos políticos”.

Ainda no acórdão, estabeleceu-se critérios para o uso de paródias na propaganda eleitoral, como a necessidade de a paródia ter certo grau de criatividade, não podendo ser reprodução da obra parodiada; que não tenha efeito desabonador da obra originária; que a paródia deve manter o respeito à honra, à intimidade, à imagem e à privacidade de terceiros e; que a paródia deve respeitar o direito moral de ineditismo do(a) autor(a) da obra original.

No entanto, não parece ser este o caminho mais adequado para tratar do tema da paródia nas campanhas.

Desde os anos 80 os estudos sobre discursos na comunicação social ressaltam que as interações discursivas viabilizam que se tenha um traço essencial de um enunciado, que é a existência de uma margem também repleta de outros enunciados. O discurso, aqui, conta com elementos de fala, de imagem, de ambos e até outros, pensando em quem vai receber a mensagem. Ou seja, o discurso tem em mente a condição social e histórica externa que visa influenciar. O enunciador fala pensando para quem, para que e de que forma falar, a fim de que se gere memoria, que por sua vez representa algo que já pode estar na sociedade ou que se deseja que permaneça. É a relação do exterior com a memória social que dá forma ao discurso, conformando uma memória discursiva.[3]

É a partir desse ponto que o discurso, quando revisitado, pode ser ressignificado quantas vezes isso ocorrer, havendo uma dialeticidade com o mundo externo. É o que ocorre com a paródia, pois ao revisitar uma obra original, esta ganha novas feições, contornos e reinterpretações naturais da interação da obra com quem a recebe, gerando novas memorias e, por consequência, consensos e dissensos sobre ela.[4]

Ocorre que estamos em tempos do que Flávia Fredenberg denominou de polarização tóxica.[5] Segundo a autora, é natural e próprio da democracia que exista certo tipo de polarização, pois isso reflete a pluralidade de pensamentos e posicionamentos que há, enriquecendo o espaço público. No entanto, essas diferenças se convertem em ataques em um quadro tóxico, formando uma separação binária simplista da política em que há um cenário de “nós contra eles”, como se houvesse inimigos a serem combatidos. Com isso, atores políticos perdem incentivos a um comportamento mais amistoso de ideias e adotem estratégias mais bélicas contra os tidos opositores.

Esse contexto vem amparado por dados do índice V-Dem 2023, que trouxe informações que demonstram que a polarização se aprofundou, principalmente em 2021, em que 36,84% dos especialistas pesquisados perceberam que os partidários de campos políticos opostos interagiam de maneira hostil e que havia padrões de polarização social severa, refletida na sociedade com diferenças de opinião sobre quase todas as principais questões políticas, resultando em grandes confrontos de pontos de vista (57,8% dos especialistas consultados).[6] Assim, quando as pessoas têm posições diferentes sobre as questões, é mais provável que se confrontem de forma irreconciliável.

O Brasil também foi um foco específico de comentário do citado relatório, que ressaltou os grandes desafios que a polarização política impõe, considerando que 2022 não foi possível aplacar a divisão interna que ainda permanece na sociedade brasileira.

Diante disso, tem-se que a equiparação de candidaturas a produtos como os do mercado é indevida, pois a decisão que envolve a compra de um produto e a do voto atendem a dinâmicas distintas. Um produto adquirido não toma decisões pela pessoa, não a representa como cidadã e muito menos exerce funções públicas. Já o voto elege representantes, que possuem funções públicas e que respondem pela cidadania no âmbito político.

É igualmente equivocado considerar que o marketing comercial se assemelha ao eleitoral, isso porque o produto “à venda”, no caso do último, expressa opinião, comportamentos, que podem mudar, inclusive radicalmente, ao longo do tempo ou por conjunturas sociais, o que não ocorre com um produto fruto do primeiro.

Assim, pode ser ingênuo pensar que não há consequências para os autores das obras utilizadas em campanhas eleitorais sem autorização, quando há uma sociedade que avalia tais materiais de acordo com um óculos polarizador e que não hesitará em aplicar reprimendas – muitas vezes violentas – se julgar que aquela figura corresponde ao seu inimigo.

É aqui que se pode mencionar a cultura do cancelamento e o linchamento digital como manifestações abruptas de pessoas que tiveram contato com a obra adulterada, que por sua vez não estão em condições de discernir que o seu autor não deve responder por ela, mas somente a candidatura que a utilizou sem a autorização devida.

Para além dessa questão, existe também os direitos políticos dos artistas e autores de obras parodiadas. Sendo direitos próprios do campo das liberdades individuais desde a sua origem, os direitos políticos não se constituem somente pelo direito de votar e ser votado, mas também pelo pensar, expressar, manifestar, ou ficar em silencio, se omitir e simplesmente não participar.

Ao serem direitos de liberdade por excelência, as pessoas têm o direito de votar ou não, de se candidatar ou não, de se posicionar politicamente ou não. Não há como coagir alguém a tomar uma posição que traia seus valores e princípios. Da mesma forma que o Estado não pode obrigar as pessoas a terem opinião, manifestação, associação ou religião, muito menos seria forçá-las a terem uma posição política.

Portanto, a solução adotada pelo TSE ainda é insuficiente nos tempos atuais. Ao fixar na resolução que “a autora ou o autor de obra artística ou audiovisual utilizada sem autorização para a produção de jingle, ainda que sob forma de paródia, ou de outra peça de propaganda eleitoral poderá requerer a cessação da conduta”, por petição posterior ao fato, isso já permitiu a exposição do artista, que, com a velocidade das redes sociais, já teve a sua obra ressignificada inúmeras vezes, em um quadro de preocupante polarização.

É preciso que exista uma regra de autorização para o uso de paródias na propaganda eleitoral, protegendo os/as autores/as de obras de todas as consequências aqui mencionadas. A exceção deveria ser a petição de retirada da propaganda. A questão ainda segue em aberto.

[1] Cf. vídeo na íntegra de sua participação em: https://www.youtube.com/watch?v=0gA7oKxHFI0&pp=ygUQbWFyaXNhIG1vbnRlIHRzZQ%3D%3D

[2] Recurso especial nº 1.810.440 – SP, STJ, e Reclamação n° 55.800 (SP) no Supremo Tribunal Federal.

[3] FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 21 e ss; FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2014. p. 10.

[4] POSNER, Richard A. When is Parody Fair Use? University of Chicago Journal of Legal Studies, v. XXI, p. 67-76, jan. 1992. p. 71.

[5] FREIDENBERG, Flavia. Polarização tóxica e democracia liberal. El Universal, 10 de janeiro de 2024. Disponível em: https://www.eluniversal.com.mx/opinion/observatorio-de-reformas-politicas-en-america-latina/polarizacion-toxica-y-democracia-liberal. Acesso em: 06 mar. 2024

[6] V-DEM INSTITUTE. Democracy report 2023. Universidade de Gotemburgo, Suécia. 2023. Disponível em: https://www.v-dem.net/documents/29/V-dem_democracyreport2023_lowres.pdf. Acesso em: 06 mar. 2024.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *