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Proteínas na reforma tributária: isonomia, critérios e aspectos sociais

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É de se esperar que numa reforma tributária tão gigantesca como a atual haja inúmeros critérios, diferentes visões de país e de justiça fiscal. É justamente para isso que serve o processo legislativo, de forma a evitar distorções e medidas que, na prática, podem se tornar mais um problema do que solução. 

Foi nesse contexto que a Câmara dos Deputados criou um grave desequilíbrio no mercado de proteínas e agora o Senado tem a oportunidade de discutir. De um lado, há a isenção fiscal de diversas proteínas, enquanto outras terão algum tipo de tributação, geralmente com algum tipo de justificativa técnica ou social para essas diferenciações – a exemplo do foie gras

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À primeira vista, essa diferenciação é necessária e, mais do que isso, louvável. Mas erros estão aí para serem corrigidos e é preciso tratá-los com clareza e objetividade. E é aí que surge o grave desequilíbrio em relação aos peixes e, mais especificamente, em relação ao bacalhau. Tributá-lo (ou não) terá impacto diminuto nas contas públicas, mas é preciso deixar claro ao legislador outros critérios, inclusive sociais e religiosos, para definir a melhor solução para o impasse surgido na Câmara. 

O Brasil importou em 2023 1,3 mil toneladas de bacalhau por mês, marca que este ano, até junho, já havia superado em 25%. Os números estão aí para mostrar que essa tradição gastronômica, vinda com as caravelas, está mais viva do que nunca e se intensifica durante feriados religiosos, como a Páscoa e o Natal. Nesses períodos, chegam a aumentar em 50% as cargas de peixe seco e salgado trazidas de países como Portugal e Noruega. 

Nas mesas dos brasileiros, seja qual for a classe social, o bacalhau é um alimento associado ao jejum e à comunhão cristã, mas a reforma tributária em discussão no Congresso tem dado a ele o tratamento seletivo e desigual aplicado a produtos relacionados ao “pecado”, como as bebidas alcoólicas. 

Visando fazer justiça social, já há emendas no Senado que propõem zerar o imposto sobre valor agregado (IVA) de produtos da cesta básica. A iniciativa é louvável, principalmente porque a alimentação consome 25% do orçamento das famílias menos abastadas. Porém, essa desoneração vem sendo feita com algumas distorções em relação às proteínas, dissociando-se dos hábitos da população e das recomendações de nutrição do Ministério da Saúde.

O projeto de regulamentação aprovado na Câmara, agora sob análise do Senado, isentou, por exemplo, o IVA das carnes vermelhas, inclusive dos cortes mais nobres, só consumidos em restaurantes de classe A. Mas manteve a tributação cheia sobre algumas proteínas de consumo popular. Mantido esse entendimento, o brasileiro comprará wagyu, o exclusivo boi japonês, pagando zero de imposto. Sobre o bacalhau da Páscoa e Natal, incidirá a alíquota máxima, projetada para ser de 28%. Não parece ser um critério isonômico que atenda à melhor técnica tributária e, mais do que isso, que se aplique à realidade do nosso país. 

O resultado é que o peixe deve subir de preço e perder a competição com outros itens alimentares. Atualmente, no Rio, incide sobre o peixe uma tributação de cerca de 21%. Com o novo IVA, portanto, a tendência é de que haja um aumento do valor praticado no varejo. Esse impacto também se dará por causa de custos indiretos, como o transporte, cujo imposto será mais alto. 

O problema maior, no entanto, é que o bacalhau ficará relativamente muito mais caro. Enquanto outras proteínas terão reduções de 60% ou 100% no IVA, ele ficará de fora. E o consumidor tende a trocá-lo por produtos de preço mais atraente, ainda que sejam menos saudáveis e não tenham vínculo com seus costumes. 

Caso receba tratamento idêntico ao das carnes vermelhas, o quilo do peixe custaria, em média, R$ 71 e competiria de igual para igual nas prateleiras; com o imposto cheio, o valor saltaria para R$ 120.

Esse descolamento, certamente, impactará o brasileiro de menor poder aquisitivo e que, hoje, é quem mais compra bacalhau, especialmente em feriados religiosos. A ideia de que se trata de um item de luxo é um mito que o dia a dia do varejo desconstrói. A Casas Pedro, maior rede de empórios do Rio, vende mais bacalhau nas lojas de bairros simples, nas regiões Norte e Oeste da capital, que nas da zona Sul. Também são líderes as filiais de São Gonçalo, Baixada Fluminense e Nova Iguaçu.

Isso é possível porque o que conhecemos como bacalhau são alguns peixes secos e salgados, não apenas um.  Há espécies para diferentes tipos de bolso (Gadus Morhua, Ling, Zarbo, Saithe) e em apresentações variadas (lombo, desfiado, em filetes…). O menu é democrático.  

Com um aumento médio de preço de R$ 49, o que ocorrerá a depender do resultado das tratativas no Senado, o consumo ficará proibitivo. Aí, sim, o bacalhau será alçado ao patamar de iguaria.

Para evitar que isso ocorra, é necessário que os legisladores deem tratamento isonômico às carnes e peixes, levando em conta não só os aspectos econômicos, mas os culturais e de saúde. É um contrassenso promover uma ampla isenção da carne vermelha quando o Ministério da Saúde, por meio do seu guia alimentar para a população brasileira, recomenda reduzir o consumo excessivo desta proteína, ricas em gordura saturadas, como forma de evitar diversas doenças crônicas, como as do coração, substituindo-as justamente por peixes e outras proteínas de baixa caloria e alto valor nutricional. 

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O bacalhau é um desses representantes. Além dele, outros pescados amplamente consumidos no Brasil e com boas características, a exemplo do salmão e do atum, permanecem com tributação total.

Diante das distorções no texto da regulamentação, alguns senadores, sobretudo os ligados às bancadas religiosas, apresentaram emendas para equiparar as alíquotas do bacalhau e das carnes vermelhas. No entanto, por ora as iniciativas são isoladas e que não podem se perder no oceano de sugestões já feitas ao texto. Não houve manifestação a respeito de lideranças do governo e dos principais partidos, o que é preocupante. É preciso deixar claro: a reforma tributária tem sério risco de encarecer, e muito, as tradições alimentares dos brasileiros nos feriados religiosos. 

Não se trata aqui de defender tributação. Pelo contrário: o caminho para as proteínas é justamente a isenção – mas sem distorções. As isenções para produtos da cesta básica são um dos principais instrumentos da reforma para reduzir desigualdades, a razão de existir da reforma. É preciso que os legisladores as apliquem com coerência e sensibilidade.

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