Qual deve ser a extensão do segredo empresarial no capitalismo de dados?

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Já tive oportunidade de mostrar os desafios de se conciliar a proteção do segredo de empresa com o princípio da transparência e diversos dos direitos fundamentais dos titulares de dados pessoais[1]. A dificuldade é potencializada pelo texto da LGPD, que menciona o segredo de empresa 13 vezes, inclusive na própria definição do princípio da transparência e na modulação dos principais direitos dos titulares de dados.

Nesse sentido, a preocupação da LGPD com a proteção do segredo empresarial chegou ao cúmulo de incluir, dentre as competências da ANPD, ao lado de zelar pela proteção dos dados pessoais (art. 55-J, I), a de zelar pela observância do segredo empresarial (art. 55-J, II), equiparando a proteção deste último à dos dados pessoais.

Não seria exagero, portanto, afirmar que a LGPD não se destina apenas à proteção dos dados pessoais, mas também à proteção do segredo de empresa dos agentes de tratamento. Afinal, o segredo não foi previsto apenas como baliza ou limite para a proteção de dados, mas como bem jurídico que merece ser tutelado na exata proporção da tutela dos dados pessoais.

Ocorre que, como procurei demonstrar no artigo anterior[2], a própria categoria do segredo de empresa é cercada de ambiguidades e controvérsias, notadamente sobre a extensão da proteção conferida aos seus titulares. Não é sem razão que os agentes econômicos interessados tendem a se aproveitar de tais impasses para sustentar um alcance praticamente absoluto ao segredo de empresa.

Não obstante, é preciso lembrar que, apesar das muitas controvérsias sobre a natureza jurídica do segredo empresarial – e em que medida se aproximaria ou se distanciaria da propriedade intelectual – não há maiores discussões em torno do que fundamentaria a proteção do segredo empresarial em si.

As justificativas normalmente apresentadas são: (i) a merecida tutela de um ativo que foi criado licitamente por determinado agente econômico, (ii) a vedação de condutas parasitárias ou de apropriação indevida do valor gerado por um agente econômico por outro, com base em princípio maior de prevenção a condutas que extraem renda sem gerar valor (rent seeking), bem como (iii) a vedação à concorrência desleal ou abusiva.

Assim, não seria exagero afirmar que a proteção do segredo de empresa insere-se em um contexto de preocupações com a concorrência pelo mérito, razão pela qual é lícito garantir a agentes econômicos a exclusividade do proveito de um ativo que eles criaram, assim como é ilícito permitir aos demais agentes econômicos que tenham acesso ou se aproveitem indevidamente desse ativo.

Analisada a questão por uma perspectiva concorrencial mais macro, a proteção do segredo de empresa também se justifica pelo propósito de estímulo da rivalidade, já que o amplo conhecimento, pelos concorrentes, de ativos de um rival que ora são protegidos pelo segredo poderia restringir o processo competitivo, além de induzir comportamentos colusivos, dentre outros ilícitos concorrenciais. Assim, haveria igualmente razões de interesse público a justificar a proteção do segredo de empresa.

Entretanto, a arquitetura jurídica de proteção do segredo de empresa foi construída em cenário anterior ao chamado capitalismo de dados ou de vigilância. Na atualidade, vários dos fundamentos que justificam a proteção do segredo de negócios ficam comprometidos, até porque a matéria-prima dos ativos normalmente tutelados pelo segredo são os dados pessoais que, por mais que apresentem uma dimensão econômica, são ativos dos titulares e não dos agentes de tratamento.

Com efeito, mesmo quando consentem com o tratamento de dados por um determinado agente, os titulares não estão lhe transferindo a titularidade do ativo, mas tão somente possibilitando que este possa ser utilizado sob determinadas condições.

Mesmo quando se trata de dados inferidos, é no mínimo complicado dizer que são ativos exclusivos dos agentes de tratamento, até porque foram criados a partir dos dados pessoais dos verdadeiros titulares. Por mais que haja contribuição adicional e trabalho dos agentes de tratamento, fato é que nada poderia ocorrer sem a utilização dos ativos originais dos titulares de dados – os dados “crus”.

Tal constatação mostra que, ao contrário do que comumente ocorre em relação aos objetos de proteção do segredo de negócio, que visam a resguardar o fruto do trabalho do agente empresarial ou algo que foi criado exclusivamente por ele e que pode ser considerado de sua titularidade, não é essa propriamente a realidade do capitalismo de dados.

Mas as discussões não acabam por aí. O capitalismo de vigilância, como denunciam muitos autores[3], tem se estruturado a partir da extração indevida dos dados pessoais dos cidadãos, muitas vezes sem o seu conhecimento, sem o seu consentimento ou sem o atendimento de nenhuma base legal. Tal cenário parece não ter se alterado mesmo após as legislações de proteção de dados.

Sob essa perspectiva, fica ainda mais difícil justificar a tutela jurídica de um ativo que os agentes de tratamento criam a partir de ativos dos titulares de dados, aos quais muitas vezes têm acesso de forma ilícita.

Ainda há camada adicional de complexidade: ao contrário do que é normalmente protegido pelo segredo de negócio, os dados pessoais e os processos de tratamento de dados, muitos dos quais decorrem de sistemas algorítmicos, são muitas vezes utilizados pelos agentes de tratamento contra os próprios titulares de dados.

Esse é um dos pontos mostrados, com muita argúcia, por Carissa Véliz[4], ao defender que os agentes de tratamento, que deveriam ter deveres fiduciários diante dos titulares de dados, apenas podendo utilizar tais dados em benefício destes, acabam fazendo o oposto, ou seja, utilizam o poder que decorre dos dados pessoais contra os titulares para deles obter vantagens indevidas.

A crítica da autora mostra as razões pelas quais, muito mais do que ativos ou insumos do capitalismo movido a dados, os dados pessoais são grandes fontes de poder que, ao serem utilizados sem accountability e transparência, criam incentivos para o abuso e para inúmeras violações ao dever constitucional de proteção de dados.

Já tive oportunidades de mostrar os efeitos nefastos de tais práticas para os titulares de dados, explorando a questão das discriminações algorítmicas em um sentido mais amplo[5] e as práticas violadoras dos direitos dos consumidores, tais como geopricing e geoblocking[6], precificação personalizada[7] e precificação dinâmica[8].

Tais circunstâncias mostram que, no capitalismo movido a dados, agentes de tratamento, com base em poderosos sistemas algorítmicos, podem classificar indivíduos com o propósito de decidir o que eles são ou podem ser, bem como as oportunidades ou direitos a que poderão ter acesso, assim como as respectivas condições.

Não é sem razão que, diante dos graves resultados que os sistemas algorítmicos podem causar aos cidadãos, especialmente em decorrência de discriminações ilícitas ou abusivas, Cathy O’Neil[9] já considerou os algoritmos como armas de destruição matemática.

Dessa maneira, não seria exagero dizer que, no capitalismo de dados, o que comumente está protegido pelo segredo de empresa é o resultado de uma indústria de classificações e julgamentos valorativos das pessoas, que impactam nos aspectos mais importantes de suas vidas e, na dimensão coletiva, igualmente na política, na economia e na sociedade.

Assim, ao contrário dos ativos empresariais que tradicionalmente são protegidos pelo segredo de empresa – que não afetam, pelo menos diretamente, os cidadãos-consumidores – estamos falando aqui de ativos que, ainda que possam ser considerados de titularidade dos agentes econômicos, interferem diretamente na vida dos cidadãos-consumidores, podendo comprometer situações existenciais e patrimoniais da mais alta relevância, assim como a fruição de direitos fundamentais dos mais importantes.

Não estou com isso negando que parte dos tratamentos de dados ocorrido no capitalismo de vigilância pode ocorrer licitamente e gerar valor que precisa ser protegido. O que estou afirmando é que, diante das características usuais do capitalismo de dados, em que a matéria prima original é um ativo do titular de dados e os tratamentos de dados costumam lhes afetar diretamente, dificilmente esse ativo pode ser considerado exclusividade do agente de tratamento e muito menos estar sujeito a uma proteção absoluta por meio do segredo de empresa.

Pelo contrário, a visão absoluta e estanque do sigilo empresarial mostra-se incompatível não só com o direito fundamental à proteção de dados, como também com diversas outras garantias constitucionais, de que são exemplos o devido processo legal e a ampla defesa. Afinal, as pessoas não têm como se defender daquilo que não conhecem ou entendem. A partir do momento em que somos julgados por algoritmos, precisamos saber sobre como esse julgamento é realizado, de modo que eventuais preocupações concorrenciais que justificam a proteção do segredo de empresa precisam no mínimo ser sopesadas com os direitos fundamentais dos afetados por julgamentos algorítmicos.

Diante de todos esses pontos, observa-se que o primeiro desafio do capitalismo movido a dados é precisamente o de se saber se os principais ativos gerados pelos agentes são realmente de sua titularidade exclusiva e/ou podem ser protegidos por segredo de empresa, especialmente quando repercutem diretamente na esfera jurídica dos titulares de dados.

Exemplo interessante da discussão é o caso das bases de dados, que, pela Diretiva 96/9/CE do Parlamento Europeu e do Conselho[10], não são consideradas propriamente segredos de negócios, mas sim direitos sui generis. Trata-se de interessante exemplo, que nos faz pensar sobre que outras situações precisariam ser endereçadas por outras soluções jurídicas que possam compatibilizar melhor os interesses dos agentes de tratamento com aqueles dos titulares de dados.

Por outro lado, ainda que se queira continuar trabalhando com a categoria do segredo de negócios, no mínimo se terá que pensar sobre o alcance da proteção quando estão em jogo os direitos fundamentais de proteção de dados dos titulares e garantias constitucionais valiosas, como o contraditório e o devido processo legal.

Aliás, vale lembrar que até mesmo para aqueles ativos que tradicionalmente são considerados suscetíveis de tutela pelo segredo de empresa, a proteção não é absoluta. Tanto é assim que o próprio art. 206, da LPI, admite a possibilidade de revelação de segredo de empresa em juízo, ainda que com todas as garantias cabíveis. Com maior razão, há que se pensar em formas de flexibilizar o segredo de empresa diante dos desafios decorrentes do capitalismo movido a dados.

Ainda é preciso considerar que caminhamos para um capitalismo em que o poder pretende de invisibilizar de todas as formas, até porque, a partir do momento em que o seu exercício não é identificado nem compreendido, não se há como lhe imputar as devidas responsabilidades, o que compromete o próprio projeto democrático.

As tentativas de invisibilização do poder empresarial são inúmeras e vão desde as cadeias societárias, muitas vezes pensadas para dificultar a identificação de quem exerce efetivamente o poder, até diversas outras estratégias, dentre as quais a tecnologia e os sistemas algorítmicos. Se uma série de decisões importantes de agentes privados e públicos estão sendo delegadas para sistemas algorítmicos, é inequívoco que o segredo de empresa não pode representar imunidade para o cumprimento dos direitos fundamentais daqueles que são afetados por tais decisões.

Nesta parte, a discussão sobre o segredo de empresa precisa se conectar com princípio que é fundamental para a regulação da atividade econômica, tanto do ponto de vista jurídico, como do ponto de vista econômico: o que exige a correspondência entre poder e responsabilidade. Afinal, se esta equação não é atendida, o resultado é a iniquidade, a assunção excessiva de riscos e a total despreocupação com a geração de externalidades negativas.

Diante de todo esse cenário, é no mínimo ingênuo acreditar que o segredo de empresa deve se aplicar linearmente aos desafios gerados pelo capitalismo movido a dados. É urgente pensarmos em situações nas quais ele deve ser afastado e, mesmo naquelas em que ele pode ou deve ser aplicado, delimitar a sua extensão e a sua compatibilidade com os direitos de titulares de dados e com o próprio projeto democrático.

[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/transparencia-de-algoritmos-x-segredo-de-empresa-09062021?non-beta=1

[2] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/transparencia-de-algoritmos-x-segredo-de-empresa-09062021?non-beta=1

[3] Ver, por todos, ZUBOFF, Shoshana. The age of surveillance capitalism. The fight for a human future at the new frontier of power. New York: Public Affairs, 2019.

[4] VÉLIZ, Carissa. Privacy is power. Why and how you should take back control of your data. Bantam Press, 2021.

[5] FRAZÃO, Ana. Discriminação Algorítmica. Série. Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/discriminacao-algoritmica-16062021?non-beta=1

[6] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/geopricing-e-geoblocking-as-novas-formas-de-discriminacao-de-consumidores-15082018?non-beta=1

[7] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/precificacao-personalizada-riscos-discriminacoes-abusivas-02022022?non-beta=1

[8] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/precificacao-dinamica-e-danos-ao-consumidor-27032024?non-beta=1

[9] O’NEIL, Cathy. Weapons of Math Destruction. How Big Data increases inequality and threatens democracy, Crown, 2016.

[10] https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:31996L0009

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