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Quando a tradição segrega: a laicidade no banco dos réus no STF

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“Para cada constituição existe um épico, todo decálogo possui uma escritura.” (Robert Cover, Nomos and Narrative)

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que manteve, por unanimidade, a presença de símbolos religiosos em prédios públicos como manifestação histórico-cultural, levanta questões cruciais sobre a neutralidade estatal e os limites da deferência à “tradição”.

Sob o pretexto de preservar a história e a cultura nacional, o tribunal reforçou no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1249095 uma visão que privilegia, ainda que implicitamente, a hegemonia de uma religião ou matriz religiosa sobre as demais, colocando em xeque o compromisso com um Estado verdadeiramente laico.

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A defesa da permanência de crucifixos e outros símbolos religiosos em espaços públicos baseia-se no argumento de que tais elementos seriam reflexos da “tradição cultural da sociedade brasileira” e, portanto, não violariam os princípios da não discriminação, da laicidade estatal e da impessoalidade.

A questão que se coloca é: de qual história, de qual tradição ou de qual cultura estamos falando? A ostentação de símbolos religiosos, majoritariamente católicos, é, em grande medida, um legado do colonialismo, por meio do qual a fé cristã não apenas moldou, mas subjugou as crenças e práticas de povos originários e afro-brasileiros.

Ao perpetuar a proeminência desses símbolos, desconsiderando a história de violações, relações assimétricas e desigualdades estruturais entre tradições, o STF reafirma uma perspectiva histórica eurocêntrica que invisibiliza a pluralidade de cosmologias e modos de existir que constituem o Brasil e a brasilidade.

É impossível ignorar como a branquitude, enquanto posição de privilégio – que é também simbólico – permeia essa decisão. Ao justificar a presença de insígnias religiosas no espaço público, o tribunal valida e reforça uma narrativa racializada, profundamente marcada pela dominância branca e cristã, e confere um caráter autoritativo a determinados grupos e suas visões de mundo.

A branquitude, novamente, naturaliza sua centralidade, transformando sua religiosidade em “tradição”, com efeitos flagrantemente discriminatórios. Qual mensagem passa aos adeptos de outras confissões ou à população ateia ou não religiosa o encontro com esses símbolos numa repartição, num plenário legislativo ou numa sala de audiências?

Se estão fisicamente presentes os símbolos, não estarão igualmente presentes os valores de fundo religioso nas deliberações dessas instâncias? O papel contramajoritário da Corte Constitucional sem dúvida demandaria maior consideração e respeito às demais comunidades historicamente estigmatizadas e marginalizadas em nosso país.

Enquanto as crenças e cosmovisões de populações não brancas permanecem relegadas ao exotismo ou ao silêncio, o processo de secularização brasileiro segue incompleto. O espaço público almejado pela Constituição de 1988 deve acolher a diversidade, em vez de firmar-se como um território de hostilidade e exclusão, onde o “universal” é reiterado como o padrão branco e cristão.

Essa decisão também escancara o que parece ser um profundo temor do Tribunal em enfrentar os desafios da pluralidade contemporânea, ignorando que a religiosidade é fenômeno que ultrapassa a mera convicção de foro íntimo. Aliás, o tema já fora um dos mais candentes nos debates acerca do III Plano Nacional de Direitos Humanos, há mais de uma década.

Manter símbolos religiosos em repartições públicas não é um gesto de neutralidade ou de celebração da diversidade cultural, mas um ato que cristaliza – e cristianiza – uma narrativa única e problemática. Em um país onde múltiplas expressões de fé coexistem, embora cada vez mais essa coexistência seja ameaçada pelo proselitismo e a perseguição, uma efetiva neutralidade estatal deveria ser a garantia de que nenhuma delas seja privilegiada ou oprimida. No entanto, ao optar por essa interpretação limitada e frágil de laicidade, o STF parece sucumbir à pressão de uma suposta “tradição” que segrega muito mais do que une.

A conclusão do julgamento desemboca numa tese perigosa: a de que símbolos religiosos, ao serem tomados como elementos culturais, estão purificados da violência, do conflito e desprovidos de força. As representações e imaginários – juristas deveriam sabê-lo ainda mais – são antes, de mais nada, questões de poder. Assim, o pronunciamento da corte ignora que tais ícones não são neutros nem isentos e que, para muitos, são particularmente ofensivos e opressivos.

O STF – assim como já havia feito em 2017 ao autorizar o ensino religioso confessional – buscou tutelar uma tradição brasileira, mas, ao fazê-lo, acabou reforçando uma prática que tem histórico de exclusão.

Perdeu, assim, uma importante oportunidade de consolidar um sentido robusto de Estado laico: um Estado verdadeiramente inclusivo, plural e comprometido com a igualdade, que permita a todas e todos a participação plena na vida pública, inclusive no plano simbólico.

A laicidade, longe de rejeitar a diversidade, a reconhece como um elemento essencial da justiça e da liberdade. Como lembra Robert Cover, o mundo normativo é também moldado pelas narrativas que produzimos. Nesse contexto, cabe refletir sobre como as decisões do STF podem reafirmar um compromisso mais próximo dos valores constitucionais de inclusão e igualdade, em vez de se vincular a interpretações específicas de tradições religiosas.

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