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Reclamação constitucional e mitigação da aderência estrita

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Tenho dedicado boa parte de meus escritos à temática da reclamação constitucional. Esse instrumento processual – cuja natureza jurídica já foi muito discutida – permaneceu durante muito tempo restrito a certas situações importantes, mas bastante restritas, em que a competência do Supremo Tribunal Federal era usurpada ou a autoridade de suas decisões violada.

Contudo, as mudanças legislativas recentes – em especial o Código de Processo Civil de 2015 – aliadas ao aperfeiçoamento da jurisprudência do STF em questões complexas geraram um interesse renovado pela prática da reclamação e serviram para agregar a ela funções que denominei contemporâneas, a saber, cognitiva, preventiva, integrativa-esclarecedora e extensiva.[1]

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A função cognitiva permite ao tribunal reanalisar uma decisão anteriormente proferida e, havendo alteração no contexto histórico ou social, superá-la, adequá-la ou revisá-la. Essa função contemporânea vem se desenhando a partir do acórdão relatado pelo ministro Gilmar Mendes na Rcl 4374, na qual afirmou-se que “[a] oportunidade de reapreciação das decisões tomadas em sede de controle abstrato de normas tende a surgir com mais naturalidade e de forma mais recorrente no âmbito das reclamações”.

Ainda que a jurisprudência do STF caminhe em sentido oposto,[2] entendemos que a reclamação pode ser oferecida de movo preventivo, afinal, o jurisdicionado não deve ser obrigado a suportar uma violação à ordem constitucional objetiva (usurpação de competência ou violação à autoridade de decisão do STF) para apenas posteriormente ver o injusto revisto pela via recursal.

Pode ocorrer, também, de o alcance do provimento vinculante supostamente desrespeitado ser ainda, de certo modo, incompreensível, ou ter sido obscurecido por alguma superveniência fática ou normativa que possa interferir na correta interpretação a ser dispensada ao ato paradigma. Nesses casos, entendemos que a reclamação constitucional exercerá a importante função de esclarecer a extensão e os limites do pronunciamento anterior exarado pelo tribunal, ainda que desse esclarecimento resultar a não violação do paradigma pelo ato reclamado.

Temos, por fim, aquilo que denominados função extensiva da reclamação, no sentido de permitir a interessados a extensão dos efeitos de provimento vinculante exarado pelo STF a seus casos particulares ou a determinado segmento da sociedade, muito embora não tenham figurado em nenhum dos polos da ação originária.

Essa última função talvez seja, na atualidade, a mais comum na prática do STF e tem se mostrado particularmente importante para a garantia da isonomia e da tutela de situações específicas que, de outro modo, permaneceriam sem resolução ou dependeriam de meios processuais menos eficientes.

É o que se extrai por excelência da experiência do STF que se estabeleceu após a paradigmática decisão de 6.9.2023, emitida pelo ministro Dias Toffoli na Rcl 43.007, na qual declarou-se a imprestabilidade dos elementos de prova obtidos a partir do Acordo de Leniência celebrado pela Odebrecht.

A referida decisão serviu, posteriormente, para remediar tantas outras situações inconstitucionais geradas pela operação lava jato, tal como a suspensão na multa ilegal imposta ao Grupo J&F (PET 11.972), a declaração de nulidade dos atos praticados em desfavor de Marcelo Odebrecht ( PET 12.357) e o trancamento de ação de improbidade administrativa movida contra o atual vice-presidente Geraldo Alckmin, porque a referida ação baseava-se em provas declaradas ilícitas pela Corte (Rcl 71.505).

O que nos importa destacar neste texto é que a reclamação constitucional não pode adquirir novas funcionalidades mais adaptadas às situações complexas sem que certas construções doutrinárias e jurisprudenciais sejam redimensionadas.

Destaquei isso em texto publicado no JOTA no qual sustentei que a desistência em reclamações não pode ser interpretada como ato meramente potestativo e unilateral do desistente, sob pena de estimular-se a litigância meramente estratégica perante o STF, e isso especialmente em vista do fato de que a reclamação integra o modelo brasileiro de controle de constitucionalidade e tutela precipuamente a autoridade de nossa Corte Suprema.[3]

Me parece que a exigência de “aderência estrita” feita pelo STF como requisito de processamento da reclamação[4] é outra construção que merece ume releitura, particularmente quando o tribunal estiver diante de um caso em que uma das funções contemporâneas da reclamação possa ser utilizada.

A ideia de aderência estrita é bem adequada a um modelo estático de reclamação em que é razoavelmente fácil identificar a usurpação de uma competência do STF – basta pensar em pedido deduzido perante tribunal estadual para que se declare a inconstitucionalidade, em abstrato, de lei federal – ou o descumprimento por outra instancia do Judiciário de comando emitido pelo Supremo.

Quando se trata de esclarecer, estender ou evitar a ocorrência de lesões a direitos, a incidência da aderência estrita é bem menos clara porque costumam entrar em cena elementos particulares do novo caso que dificilmente se adequarão com perfeição ao caso paradigma.

Uma prova declarada ilícita pelo STF, por exemplo, pode ter encontrado muitas formas de ser utilizada em condenações ilegais, sejam elas cíveis, penais ou administrativas. Incumbe àquele que se beneficia da reclamação demonstrar que ao seu caso deve ser aplicada decisão análoga à do caso paradigma, ainda que esta ou aquela circunstância fática ou jurídica não se adeque perfeitamente ao caso referência.

Aliás, não raras vezes o tribunal emite decisões vinculantes cujo alcance não conhece totalmente justamente porque só o caso concreto veiculará situações “normais” de aplicação da tese e situações em que sua incidência parecerá problemática, a demandar uma revisão, esclarecimento, aditamento ou até o estabelecimento de uma regra de exceção dentro do próprio posicionamento da Corte.

Isso pode ser comparado à declaração de constitucionalidade que se obtém pela procedência de ação declaratória de constitucionalidade ou pela improcedência de ação direta de inconstitucionalidade (art. 24, Lei 9.868/1999). Uma lei dificilmente será declara constitucional em definitivo justamente porque novas situações poderão trazer exemplos de possíveis consequências inconstitucionais de uma lei até então considerada constitucional.

Além disso, a veiculação de casos sem aderência estrita em relação a um paradigma determinado pode exercer em relação ao STF função análoga ao que o apelo ao legislador desempenha nas relações entre Judiciário e Legislativo. Conforme ensina Gilmar Mendes, o apelo ao legislador é decisão “na qual o tribunal reconhece a situação como ainda constitucional, anunciando a eventual conversão desse estado de constitucionalidade imperfeita numa situação de completa inconstitucionalidade”.[5]

A função preventiva da reclamação pode servir precisamente para alertar a Corte de uma situação de inconstitucionalização de alguma tese vinculante, seja pela superveniência de elementos fáticos ou normativos. Ou, ainda, que se aplicada determinada tese ao caso X, produzir-se-ia uma consequência até então imprevista, mas inconstitucional, e não nos parece razoável exigir que o jurisdicionado busque remédio somente pela via recursal.

Tomemos, ainda, o exemplo da chamada “eficácia prévia” (Vorwirkung), na qual há uma “forte tendência das forças políticas adaptarem-se ao entendimento já manifestado pelo Tribunal (…)” e “revela-se sobretudo na tendência demonstrada pelo Parlamento de positivar as decisões, ou até mesmo as recomendações oriundas da Corte Constitucional.”[6] Aqui, o Parlamento se antecipa e transforma em lei determinado entendimento do tribunal antes que esse profira decisão mandamental.

De modo análogo, a eficácia preventiva da reclamação pode servir de instrumento que instrua o STF a respeito das argumentações mais comuns que vem sendo utilizadas pelos demais tribunais para deixar de aplicar alguma tese vinculante, ou, ainda, provocar o tribunal a emitir tese vinculante que sintetize jurisprudência pacífica, mas até então sem vinculação formal, em virtude de reiterados descumprimentos pelos demais órgãos do Judiciário.

A mitigação do requisito de aderência estrita não significa sua abolição. O reclamante ainda terá o ônus de demonstrar a violação de decisão vinculante ou a usurpação de competência da corte. A mim me parece, contudo, que a utilização estanque dessa construção jurisprudencial pode engessar a prática contemporânea da reclamação e impedir que ela produza os frutos que dela são esperados, especialmente se considerarmos que a reclamação nasceu da prática e nela se desenvolve.[7]

O redimensionamento constitucional do conteúdo da aderência estrita milita em favor da expansão da jurisdição constitucional e da aplicação isonômica dos provimentos vinculantes do STF, algo que poderia ser paradoxalmente obstado caso permaneça a exigência de que uma tese seja confrontada sempre com um mesmo tipo de caso. Reinterpretação da aderência estrita, em outras palavras, é condição para que o STF ultrapasse juízos meramente formais em prol da aplicação universal da Constituição.


[1] Cf. Georges Abboud. Constituição Federal Comentada, 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024, p. 860 e ss.

[2] V.g. STF, 2ª T., Rcl 45899 AgR, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 08.04.2021, DJe 14.04.2021.

[3] Cf. Georges Abboud. “Reclamação constitucional e suas dimensões ética e transsubjetiva”. In: Jota, 29.6.2024. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/observatorio-constitucional/reclamacao-constitucional-e-suas-dimensoes-etica-e-transsubjetiva.

[4] V.g. Rcl 54831 AgR e Rcl 50141 AgR.

[5] Gilmar Ferreira Mendes. “O Apelo ao legislador: apellentscheidung: na práxis da Corte Constitucional Federal Alemã”. In: Revista de Informação Legislativa, v. 29, n. 114, p. 473-502, abr./jun. 1992. p. 482.

[6] Gilmar Ferreira Mendes. “O Apelo ao legislador: apellentscheidung: na práxis da Corte Constitucional Federal Alemã”, cit., p. 477.

[7] Cf. Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, 5ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 1025-1031.

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