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“Quem já não se sacrificou alguma vez – pela própria reputação?”
Nietzsche, Além do Bem e do Mal[1]
Nos últimos anos, tenho escrito muito sobre a reclamação ter se transformado em uma das mais importantes ferramentas da jurisdição constitucional graças ao seu caráter multifacetado. Outrossim, a reclamação detém uma particular vocação para induzir o Supremo Tribunal Federal (STF) à reflexão, calibragem e quiçá até mesmo revisão de posicionamentos vinculantes firmados, sobretudo, em sede de controle de constitucionalidade, seja ele abstrato (ADIn, ADC e ADPF) ou concreto, o qual se exerce precipuamente por intermédio da repercussão geral, que aproximou ambas as formas de fiscalização.
Já tivemos a oportunidade de analisar na seara doutrinária aquilo que denominamos as funções contemporâneas da reclamação que se apresentam até o momento, a saber, cognitiva, preventiva, integrativa-esclarecedora e extensiva.[2] Nossa classificação é, em algum grau, propositiva daquilo que entendemos ser potenciais ainda não suficientemente explorados e devidamente sistematizados dessa ação constitucional, mas é, também, uma tentativa de tematizar e organizar em âmbito doutrinário o que já vem acontecendo na prática do Supremo Tribunal Federal.
Tal como a compreendemos, a prática dá subsídios à teoria, que, por sua vez, deve fornecer mecanismos de operacionalização que auxiliem os tribunais, e em especial o STF, a lidar com as mutações pelas quais passam ações e institutos clássicos dos processos civil e constitucional.
Foi o que ocorreu, por exemplo, com o advento da repercussão geral, que aproximou os controles abstrato e concreto de constitucionalidade e, ao exigir a demonstração de um interesse transsubjetivo, conferiu aos recursos extraordinários uma dimensão objetiva que vai além de sua tradicional utilização como mera manifestação do direito subjetivo público de ação a nível recursal.
Tanto é assim que o art. 998, p.ú do CPC prevê que a desistência do recurso não impede a análise de questão cuja repercussão geral já tenha sido reconhecida justamente porque o RE passou, após a EC 45/2004 e o CPC de 2015, a tutelar, também, a própria ordem constitucional objetiva ao invés de se limitar à correção da aplicação do direito em casos individuais.
Daí a razão pela qual, ainda que a parte recorrente desista do recurso, subsiste a prerrogativa de o STF fixar teses que indiquem a interpretação constitucional mais correta a respeito de alguma temática cuja discussão pode ter sido viabilizada precisamente por ter sido veiculada num caso concreto por meio do qual a problemática constitucional em questão tenha se apresentado particularmente evidente.
No caso da reclamação, essa perspectiva transsubjetiva é ainda mais evidente porque ela exerce uma proteção de duas ordens, uma vez que ela protege o controle de constitucionalidade e sua aplicação possibilitando ao STF realizar um novo controle ao julgar a própria reclamação.
Ou seja, a reclamação é a principal ação para realizar a abertura e o fechamento cognitivo da jurisdição constitucional.
Conforme já anotamos em nosso Processo Constitucional Brasileiro, vistas em conjunto, a existência de vinculação, nas súmulas vinculantes e nas decisões oriundas de controle concentrado e em recursos extraordinários com repercussão geral, tornou excessivamente difícil o novo enfrentamento de temas que já tenham sido previamente analisados em uma das “modalidades” processuais elencadas, o que, por vezes, prejudica o aprimoramento da jurisprudência do STF que adviria de uma nova análise de temas já supostamente pacificados à luz de novas circunstâncias fáticas ou normativas.[3]
A reclamação constitucional é, em grande medida, o resultado da importação da chamada doutrina dos “poderes implícitos” (implied powers), com importante antecedente no célebre caso McCulloch vs. Maryland (17 U.S. 316) julgado em 1819 pela Suprema Corte dos Estados Unidos,[4] que pode ser suficientemente sintetizada na ideia de que a Constituição dá poderes implícitos ao exercício de competências explícitas.
Assim, se o STF é o guardião da Constituição Federal (art. 102, CF) e instância judicial máxima da interpretação constitucional, é necessário que exista um instrumento que possa garantir a sua autoridade institucional, que é precisamente a reclamação constitucional, tal como manifestado pelo próprio STF no julgamento da célebre Reclamação 141 de 1952, que foi o mais importante antecedente jurisprudencial da reclamação, legitimando-a até a sua inclusão, em 1957, no Capítulo V-A do Título III no RISTF de 1940, autorizado pelo permissivo constitucional do art. 97, inc. II da Constituição de 1946 cuja “justificação” lançada no Diário da Justiça informava que a reclamação “[v]isa manter sua inteireza e plenitude o prestígio da autoridade, a supremacia da lei, a ordem processual e a força da coisa julgada”.[5]
Vê-se, portanto, que desde o seu nascedouro, inspirado pela doutrina dos implied powers, a reclamação surgiu como um instrumento essencialmente vocacionado à proteção da jurisdição do STF, tutelando direitos subjetivos, em uma perspectiva que torna indissociável a dimensão objetiva e subjetiva, como consequência da garantia da observância de um de seus pronunciamentos.
Essa dimensão objetiva da tutela da jurisdição foi ressaltada pelas mudanças de que falamos acima, a saber, a circunstância de que o modelo brasileiro de processo civil e constitucional dispõe de diversas formas de vinculação que tornam a reclamação o único, ou, ao menos, o mais eficaz, instrumento por intermédio do qual o STF pode interpretar, reinterpretar, esclarecer, modificar e/ou definir o sentido e o alcance de seus próprios julgados, mormente aqueles emitidos de forma vinculante.
A reclamação encontra-se, hoje, em simbiose com o controle de constitucionalidade porque é parte integrante do dever imputado ao STF de exercer a jurisdição constitucional para esclarecer a mais adequada interpretação dos dispositivos constitucional, o que significa que esse writ dispõe, hoje, de uma inequívoca dimensão objetiva que impõe o redimensionamento da incidência de institutos clássicos do processo civil a ela, mormente o da desistência, algo de que o legislador, antevendo a objetivação do RE, fez ao resguardar a apreciação da questão posta em repercussão geral.
Numa palavra, o STF tem o dever de fixar a melhor interpretação constitucional quando for assim demandado, mas tem a prerrogativa de assim fazê-lo, seja para evitar controvérsias futuras ou aprimorar sua atuação anterior, e isso inclui os casos em que a problemática constitucional for mais bem vislumbrada a partir de um caso concreto complexo, que, como se sabe, é a tônica por meio do qual o direito se aperfeiçoa em condições procedurais e pós-regulatórias.[6]
Assim, a reclamação serve como indutora de aportes cognitivos a julgamentos já finalizados ou ainda em andamento perante a corte. Explicamos. Dada a própria natureza abstrata do controle concentrado de constitucionalidade, não é raro que certas controvérsias levadas ao STF possam ser vistas apenas em suas linhas mais gerais, de modo a não ser possível precisar seus desdobramentos em relação a fatos jurídicos posteriores bem como sua interação face a direitos fundamentais.
Nessa perspectiva, falta à corte a concretude de um caso em que se discuta a tese com a qual se depara em abstrato para que possa vislumbrar quais são os reais problemas postos (que não foram vislumbrados na ocasião da formação da decisão vinculante) soluções à disposição do tribunal e, ainda, quais as consequências de cada uma delas.
De modo análogo ao que defendemos quanto ao uso coordenado da ADI por omissão e do mandado de injunção, em que a primeira fixa as diretrizes gerais do dever estatal de legislar e o segundo as aplica a um caso concreto em suas minúcias,[7] a reclamação constitucional permite-nos vislumbrar, hoje, um tal uso seu coordenado com modalidades de controle abstrato de constitucionalidade para que o STF tenha a oportunidade de se defrontar com um caso real a ser resolvido pela tese fixada simultaneamente às discussões acerca de sua fixação.
Vistas as coisas desse modo, a desistência deixa de ser uma mera prerrogativa, ou até mesmo pura potestatividade, da parte que ajuizou a reclamação constitucional, tampouco questão de discricionariedade judicial. Trata-se de avaliar caso a caso os impactos e potencialidades daquela ação para a fixação, esclarecimento ou reinterpretação de posicionamentos vinculantes do STF.
Ou seja, da mesma forma que a desistência em ações coletivas, ADI, ADC e ADPF não pode ser realizada apenas em função de “escolhas” do reclamante, com maior razão, a reclamação, correlacionada a essas ações, não pode ser puramente desistida se se tratar de caso relevante para a jurisdição constitucional. Por relevância, consideramos a dimensão objetivamente considerada. Consequentemente, a desistência deixa de estar à disposição do jurisdicionado e passa a ser objeto de escrutínio do tribunal, que deve fundamentar sua concessão ou não concessão, ainda que isso implique a sucumbência da parte autora.
A respeito da doutrina dos implied powers, o professor David P. Currie anotou em seu conhecido The Constitution in the Supreme Court que o caso McCulloch vs. Maryland apresentou uma formulação melhor da questão do que um caso anterior em que essa problemática se apresentou (United States v. Fisher [1805]), justamente porque naquele se especificou que os meios implícitos devem ser apropriados e “claramente” adaptados ao exercício das competências explícitas, e não meramente conducentes a elas.[8]
Visto o cenário de intensa vinculação dos provimentos judiciais emitidos pelo STF, parece-nos evidente que a reclamação é o meio mais apropriado e adaptado a permitir a reanálise de posições da corte que eventualmente mereçam revisão, bem como servir de veículo de aportes cognitivos que viabilizem ao tribunal analisar, em atenção ao art. 20 da LINDB, a real extensão das consequências de uma tese a ser fixada em controle de constitucionalidade.
Longe de ser apenas sugestões doutrinárias, as ideias expostas ao longo deste texto encontram eco na própria jurisprudência do STF. Na Rcl. 1.503 QO, por exemplo, o ministro Menezes Direito observou que “(…) entendo que, pela nossa jurisprudência, havendo um voto do Plenário sobre o mérito, não caberia mais a desistência, senão, no curso da votação, a parte pode identificar a existência de uma tendência, e, se isso ocorrer, ele pede a desistência”. Além disso, são facilmente identificáveis diversas decisões monocráticas que impedem a desistência de reclamação cujo mérito já tenha sido decidido pela corte (v.g. Rcl. 66.885, Rcl. 66.866, Rcl. 60.811).
Por conseguinte, o redimensionamento da desistência em reclamações é forma de coibir a litigância meramente estratégica e instrumental perante o STF, que, como ápice do Poder Judiciário, merece a maior das deferências por parte de todos que atuem diante dele.
A instrumentalização da jurisdição constitucional é um risco democrático dado que torna o exercício da mais relevante trincheira dos direitos fundamentais um capricho da parte postulante e, ademais, transparece como desrespeito ao próprio STF.
[1] Friedrich Nietzsche. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma Filosofia do Futuro, trad. Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 65.
[2] Cf. Georges Abboud. Constituição Federal Comentada, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 806 e ss.
[3] Cf. Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, 5ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 1047 e ss.
[4] Cf. David P. Currie. The Constitution in the Supreme Court. The First Hundred Years: 1789-1888, University of Chicago Press, 1992, p. 160-168; Robert Eugene Cushman. “History of the Supreme Court in Resume”. In: Minnesota Law Review, v. 7, 1923, p. 275-305.
[5] Diário da Justiça de 03.10.1957. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaRI/anexo/1940/1957_outubro_3.pdf.
[6] Cf. Georges Abboud. Direito Constitucional Pós-Moderno, 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024, Parte III; Matthäus Kroschinsky. Unidade e Fragmentação: Em Torno da Sociologia Jurídica de Gunther Teubner, Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2023, p. 89 e ss.
[7] Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, cit., p. 1106.
[8] David P. Currie. The Constitution in the Supreme Court. The First Hundred Years: 1789-1888, cit., p. 163-164.