No mundo atual, a percepção das dificuldades não pode mais se dissociar do remanejamento dos quadros funcionais.
Pensando mais a longo prazo, a percepção das dificuldades possibilita uma melhor visão global dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

pensamento do dia

Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

Reforma das falências no PL 3/24: é preciso prudência

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Está em trâmite na Câmara dos Deputados, em regime de urgência, o PL 3/2024, que altera radicalmente a estrutura do processo falimentar no país. Associações de magistrados, advogados, administradores judiciais e outros profissionais da área têm reverberado, com considerável preocupação, os últimos desdobramentos desse projeto, que impacta o nosso sistema de insolvência como um todo.

Contudo, a despeito dos inúmeros apelos, a tramitação segue aceleradíssima, atropelando qualquer debate sério a respeito do pacote de mudanças apresentado.

Gostaria de poder apresentar aos leitores algum parecer sobre o mérito do projeto (ao menos daquele inicial, que vem sendo mutilado pelas emendas dos últimos dias). Adianto, todavia, que isso eu não conseguirei fazer. Não neste momento. Seria intelectualmente desonesto se afirmasse ter convicção formada sobre o acerto ou desacerto do conjunto de alterações propostas. 

Assim como a imensa maioria dos profissionais e acadêmicos da área, ainda não pude estudar, debater e meditar suficientemente sobre essas alterações. E isso depõe desfavoravelmente à manutenção do regime de urgência com que o PL vem tramitando. A comunidade jurídica demanda tempo para amadurecer um projeto dessa relevância.

O que eu tenho, neste momento, são apenas algumas impressões iniciais, preliminares. E a primeira delas é a de que nós continuamos achando que todos os problemas do mundo são resolvidos com a mudança da lei. Esse é um vício da nossa comunidade da jurídica. Nós investimos todos os nossos esforços, todas as nossas energias na busca da norma perfeita, sempre apostando na reforma legislativa como pilar fundamental da mudança de paradigma.

Por outro lado, a comunidade jurídica dá pouca importância para as instituições, formais e informais, que concorrem para a aplicação da lei. Porque o Direito não é aquele que está nos livros, nos Códigos ou na cabeça do legislador. O Direito é aquele efetivamente aplicado. Assim, de nada adiantam normas jurídicas teoricamente perfeitas se as nossas instituições – e por instituições eu me refiro a todos (juízes, promotores, advogados, administradores judiciais, empresas, credores etc.) – forem incapazes de materializar esse direito. 

Nós não discutimos aqui, de maneira séria e desapaixonada, temas profundamente sensíveis para a eficiência do nosso direito concursal, como o financiamento do serviço judiciário, que ainda hoje, no Brasil todo, não se custeia integralmente. Ele é subsidiado pelos cofres públicos. E a limitação da taxa judiciária em São Paulo para as causas de valor mais elevado gera situações absurdas, em que os mais ricos são subsidiados pelos mais pobres. Costuma-se dizer que não existe almoço grátis, mas eu tenho lá minhas dúvidas se isso se aplica à utilização do serviço judiciário no nosso país por certos setores.

Recentemente, iniciamos um processo de especialização em matéria empresarial. A academia, de modo geral, festeja esse tipo de iniciativa, mas se limita a isso. Não se discute com profundidade como deveria ser feita a especialização, se o que está sendo feito é suficiente, se a estrutura fornecida aos nossos juízes empresariais é compatível com a demanda e se os critérios adotados pelos tribunais para a seleção das competências são adequados. 

Quando estava estudando para o meu doutorado, deparei-me com um artigo que me chamou muito a atenção. Ele foi escrito por Mark  J. Roe, professor de Direito Falimentar de Harvard e publicado em 2020 na Revista de Direito Comercial dessa mesma universidade. O título do artigo? “Estimando a necessidade de juízes de falências adicionais à luz da pandemia de Covid-19”

Nesse paper, o que se faz justamente é calcular, diante da perspectiva do aumento no número de falências, quantos juízes a mais seriam necessários para dar conta do sobretrabalho. Ou seja, um dos acadêmicos mais prestigiados do mundo em matéria falimentar estava ocupado em saber o número de juízes necessários para viabilizar o sistema concursal, porque ele sabe que essa instituição é fundamental para a lei funcione. Afinal, a lei por si só não basta; é preciso haver instrumentos para sua aplicação.

De todo modo, como o tema deste artigo é o PL 3/2024, tive a ideia de analisar a velocidade com que a Lei 11.101/2005 vem sendo alterada. 

Os números são impressionantes.

O DL 7.661/1945, que disciplinou o direito falimentar brasileiro por sessenta anos, foi alvo de seis reformas legislativas (1960, 1966, 1973, 1977, 1984 e 1990). Numa conta simples, chegamos à média de uma reforma a cada dez anos. Além disso, dos cerca de 800 dispositivos daquela lei (contando as cabeças dos artigos, parágrafos, incisos, alíneas, etc.), foram objeto de alteração aproximadamente 90 deles. Ou seja, em 60 anos, cerca de 12% da lei foram alterados.

E a Lei 11.101/2005? Ela ainda não completou 20 anos, mas também já foi modificada por seis leis diferentes (2005, 2013, 2014, 2019 e 2020). Ou seja, em média, temos uma reforma mais ou menos a cada três anos. Além disso, ao tempo da sua edição, a Lei 11.101/2005 tinha aproximadamente 700 dispositivos. Atualmente, tem mais de 1.100. Até hoje, 104 dispositivos da lei tiveram a sua redação alterada, 400 dispositivos foram acrescentados e 27 foram revogados, o que significa uma mudança da ordem de 70% da lei.

Então, em 60 anos, o DL 7.661/1945 sofreu alteração de pouco mais de 10%, enquanto a Lei 11.101/2005, em um terço desse tempo, foi alterada sete vezes mais. À vista desses números, a conclusão óbvia é de que a lei tem se tornado cada vez mais complexa e sofisticada, mudando com uma velocidade impressionante.

Alguém poderia argumentar que, atualmente, a velocidade das mudanças econômicas e sociais é outra. Assim, para ficar de acordo com o seu tempo, a lei concursal precisaria ser atualizada muito mais rapidamente do que no passado.

Tenho dúvidas se esse raciocínio procede.

A título de comparação, analisei como se comportou, nos últimos 20 anos, o Direito Falimentar norte-americano, frequentemente apontado como paradigma de eficiência. Coincidentemente, a reforma legislativa mais relevante do Bankruptcy Code ocorreu justamente em 2005, com o Bankruptcy Abuse Prevention and Consumer Protection Act. Desde então, não houve nenhuma grande reforma. Houve, sim, alterações pontuais importantes, além de medidas emergenciais por conta da pandemia, mas nada que alterasse radicalmente o sistema. 

Ora, se a velocidade das mudanças econômicas realmente impusesse frequentes alterações legislativas radicais, então era de se esperar que a principal economia do mundo tivesse seguido esse mesmo caminho. Mas não foi isso o que ocorreu nos Estados Unidos. E por um motivo bastante simples: o direito requer segurança, depende de estabilidade. 

Segurança jurídica não demanda apenas a previsibilidade das decisões. Também requer a estabilidade do próprio ordenamento jurídico. É prejudicial aos contratantes a insegurança sobre a norma que vai valer amanhã. 

Aqui é preciso lembrar que o Direito Concursal também se presta a dar completude aos contratos. Como nós sabemos, os contratos são incompletos por definição, porque é absolutamente impossível aos contratantes dispor sobre todas as infinitas situações que poderão ocorrer. Uma das coisas mais difíceis, senão impossíveis de disciplinar, é justamente a situação de insolvência do devedor, porque envolve uma complexa negociação com uma coletividade desconhecida e desordenada de credores. 

Ao contratarem, os agentes o fazem sob a perspectiva do direito da insolvência vigente. Assim, são potencialmente danosas, em termos de expectativas, as constantes mutações do contrato por obra do legislador, que operam contra a segurança jurídica. 

Em seu livro sobre a metodologia da ciência do direito, Karl Larenz, citando Windscheid, pondera que a lei não é uma simples expressão do poder do legislador, um simples factum, mas a sabedoria dos séculos que nos precederam. O que se dita na lei como Direito é aquilo que antecipadamente se conhece como Direito.  

Vejamos novamente o Direito norte-americano. O que se tem no festejado Bankruptcy Code de 1978 não é nenhuma criação do legislador, mas a cristalização de uma experiência acumulada por mais de um século pelas instituições que gravitam em torno do direito da insolvência. O Direito ali não surgiu do nada, como frequentemente lembra o professor Cássio Cavalli. 

E tudo isso se relaciona diretamente com o PL 3/2024, porque certas mudanças que são postas ali não me parecem assentadas na experiência acumulada dos povos, nem no desenvolvimento paulatino da nossa jurisprudência.

Não obstante o profundo conhecimento dos seus idealizadores, esse projeto me parece um tanto quanto arriscado, do ponto de vista sistêmico. Reconheço alguns pontos bastante positivos, sobretudo no tocante ao estímulo à participação dos credores na falência, mas tenho profundas dúvidas sobre os efeitos que essa alteração legislativa iria causar em relação aos direitos dos mais frágeis. Não estou vaticinando que esses efeitos seriam necessariamente ruins. Longe disso. Estou apenas ponderando que as consequências de segunda ordem de modificações tão radicais, em tão pouco tempo, são imprevisíveis. 

Por conta da sua enorme relevância, certas áreas do Direito sujeitam-se ao princípio da precaução. E o que é a preocupação? A precaução é mais ampla do que a mera prevenção. A prevenção se presta a evitar danos ou riscos que são conhecidos. Já a precaução corresponde à conduta esperada quando não se tem certeza sobre um eventual resultado danoso. 

Esse princípio é particularmente invocado em matéria ambiental. Não se autorizam determinadas práticas, determinados experimentos, quando ainda é incerto se eles são seguros ou não. Se a indústria desenvolve um novo tipo de agrotóxico, não se admite que ele seja imediatamente aplicado nas plantações. Não antes que ele seja exaustivamente estudado, testado cientificamente, até que se saiba, com algum grau de certeza, que ele não implica danos significativos à natureza.

O direito da insolvência trata de algo que também é da maior relevância: a circulação do crédito. Quando se afeta negativamente essa circulação, os efeitos econômicos e sociais são potencialmente catastróficos. É por isso que, ao manipular o direito das empresas em crise, é preciso enorme precaução, o que se traduz na necessidade de amplo debate da comunidade jurídica, por tempo razoável, antes de qualquer mudança legislativa concreta. 

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