Regulação das bets e conflito federativo: reflexões a partir do caso Loterj

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A regulamentação do mercado de apostas tem chamado atenção da população e trazido à tona controvérsias interessantes sobre nosso ordenamento jurídico.

Em um dos episódios mais recentes, a Loteria do Rio de Janeiro (Loterj) obteve uma liminar em Mandado de Segurança para suspender os efeitos das Portarias 1.225/2024, 1.231/2024 e 1.475/2024 da Secretaria de Prêmios e Apostas, vinculada ao Ministério da Fazenda. Poucos dias depois, a tutela de urgência foi revogada pela presidência do TRF1 em sede de Suspensão de Liminar.

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Os dois primeiros regulamentos mencionados estabelecem uma série de obrigações para as empresas que exploram o mercado de apostas no Brasil (as famosas bets). O terceiro, estopim para a impetração do writ, determinou a suspensão do funcionamento e da publicidade de todos os operadores não autorizados pelo órgão federal.

De acordo com a Loterj, essas disposições violaram os atos jurídicos perfeitos provenientes dos processos de autorização promovidos a nível estadual antes da regulamentação da matéria pela União.

Em seu caso, sustentou que concedera autorizações com base no Edital de Credenciamento 1/2023/Loterj, e que a proibição de que as empresas credenciadas promovam publicidade e atendam clientes em todo o território nacional violaria sua competência federativa regulamentar.

A partir da discussão iniciada nesse processo, passa-se a refletir: como as normas estaduais do mercado de apostas de quotas fixas conviverão com as disposições federais? Como se dará a intermediação de eventuais conflitos entre as esferas federativas na atual fase de transição regulamentar?

Afinal, se determinada bet está autorizada a operar em certa unidade da federação por atender aos requisitos regulamentados por disposições estaduais, poderia uma portaria oriunda da União, publicada posteriormente e conflitante com a regulamentação estadual, interferir no funcionamento dessa casa de aposta naquela unidade federativa?

À margem de discussões sobre o caso específico da Loterj, passemos a um panorama geral sobre as indagações acima formuladas.

Legalização das casas de apostas: tema não é novo

As apostas de quotas fixas foram legalizadas pela Lei 13.756/2018, a qual não estabeleceu maiores detalhes a operacionalização dessa legalização e delegou a regulação ao Poder Executivo. Conforme o artigo 29, §3º, o governo teria 2 anos para exercer essa competência, prorrogáveis por outros 2. Contudo, o período se encerrou sem nenhuma iniciativa – ainda que as “bets” se proliferassem com velocidade no país.

A regulamentação no âmbito federal somente teve início em 2023, com a edição da MP 1.182/2023, que tampouco previu de modo claro como o mercado seria regulado e as empresas autorizadas a atuar. Disposições mais assertivas surgiram somente com a Lei 14.790/2024.

Poder não comporta vácuo: miríade de normas após calmaria regulatória

Durante todos esses anos de incerteza a respeito de como seria a regulação federal, alguns estados tomaram a frente de criar suas próprias agências, regulamentos e procedimentos de autorização e fiscalização. Foi o caso, por exemplo, do Maranhão, do Paraná e do Rio de Janeiro, com a Lotema, a Lottopar e a Loterj.

A iniciativa dos entes federativos tomou por base o artigo 29 da Lei 13.756/18, com redação dada pela Lei 14.790/24, que atribuiu o caráter de modalidade lotérica às apostas de quota fixa. Isso, pois como já sedimentado pelo STF nas ADPFs 492 e 493 – reiterado nesse ponto pela própria Lei 14.790/24 – a loteria é um serviço público que pode ser explorado tanto pela União quanto pelos estados. Tanto um como outro podem conceder a exploração à iniciativa privada.

No entendimento do STF, a União detém a competência legislativa sobre o tema, enquanto a competência material é dividida com os estados. Ou seja, as normas legais sobre a matéria devem ser fixadas a nível nacional, mas a efetiva exploração do serviço público pode ser realizada também a nível estadual.

A restrição da competência legislativa decorre sobretudo do artigo 22, inciso XX, da Constituição, que a estabelece como privativa da União no tocante a consórcios e sorteios. Com base nisso, o tribunal editou a Súmula Vinculante 2, a qual dispõe que “é inconstitucional a lei ou ato normativo Estadual ou Distrital que disponha sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias”.

Apesar disso, ambos os entes federativos podem explorar o serviço público da loteria, diretamente ou por meio de concessão.

Podemos explorar a questão sob duas perspectivas. Em primeiro lugar, devemos compreender em que medida a Constituição permite que os estados complementem a legislação federal sobre apostas de quota fixa. Em segundo, de que maneira o momento de transição atual permite flexibilizar certas restrições, em respeito ao ato jurídico perfeito e à segurança jurídica.

Possibilidade de complementar legislação federal

Tratemos do primeiro ponto. Como vimos, a competência legislativa acerca das apostas de quota fixa pertence privativamente à União. Não se trata de competência concorrente, na qual a União prevê as normas gerais e cabe aos estados legislações mais específicas.

Sendo a competência privativa, é vedado a qualquer outro ente editar leis sobre o tema. Logo, o STF vem reiteradamente declarando a inconstitucionalidade de leis estaduais sobre loterias, como destacado no acórdão das ADPFs 492 e 493.

É difícil escapar da constatação de que as leis estaduais sobre apostas de quotas fixas são inconstitucionais e serão assim declaradas quando questionadas perante a nossa Corte Constitucional. A despeito disso, nós entendemos que os estados podem contribuir com a legislação federal em nível infralegal.

A título de exemplo, basta pensar na hipótese de edição de regulamentos estaduais sobre a atividade lotérica regional ou, ainda, na concepção dos editais e contratos administrativos para as licitações voltadas à concessão do serviço público estadual de loteria.

Tais instrumentos, no entanto, não poderão contrariar as leis federais, seja para flexibilizar, seja para restringir a atividade das casas de apostas. Isso não impede a previsão de um procedimento para a concessão do serviço público estadual, inclusive com pagamento de outorga e realização de credenciamentos, mas veda o estabelecimento de obrigações divergentes das previstas na legislação federal.

Como destacado por Alexandre Santos Aragão[1], a regulamentação infralegal dos serviços públicos deve observar os princípios de não contrariedade e conformidade formal e material à legislação regulada. Todavia, sempre haverá alguma criação normativa nesse nível, uma vez que as leis jamais serão inteiramente completas, perfeitas e livres que ambiguidades e lacunas[2]. Nesse ponto, ainda que os estados fiquem vinculados às leis federais, o mesmo não ocorre, necessariamente, com as normas federais infralegais.

Floriano de Azevedo Marques Neto[3] aponta, com base no acórdão do STF no julgamento da ADI 2.902, que o direito brasileiro incorporou os conceitos norte-americanos de que, na dúvida, as cortes devem presumir a competência dos entes federativos regionais para tratar de assuntos de seu interesse (presumption against preemption), exceto se houver uma disposição federal muito clara que a exclua (clear statement rule). A harmonização dessas competências cabe à prática e, em geral, acaba recaindo sobre o Judiciário[4].

Posto isso, abordemos o segundo ponto.

Flexibilização de restrições

No caso específico do atual momento de transição no mercado de apostas brasileiro, não há como ignorar que a União descumpriu o prazo legal que lhe foi concedido para editar a legislação necessária sobre a matéria. Por sua vez, a própria Lei 13.756/18 reconheceu a importância de preservar as autorizações de funcionamento concedidas com base em regulamentos e editais expedidos antes da edição da MP 1.182/2023 (art. 35-A, §8º).

As autorizações estaduais, então, devem ser preservadas, mas qual a sua extensão? Uma autorização concedida por agência estadual poderia permitir atuação em todo o território nacional? Sem sombra de dúvida, limitam-se ao âmbito estadual. Afinal, o estado somente pode conceder um serviço público de sua titularidade. Portanto, o estado do Rio de Janeiro, por exemplo, não poderia conceder o serviço público de loterias federais, tampouco o de loterias de outros estados.

Nesse passo, o artigo 35-A, §4º, da Lei 13.756/2018 estabelece claramente que a comercialização e a publicidade do serviço público de loteria estadual só poderão se voltar à população fisicamente presente ou domiciliada em seu território. Na decisão de primeiro grau mencionada no início deste comentário, o Juízo sustentou que essa disposição seria afastada pelo artigo 3º da Lei Complementar 116/2003, a qual dispõe que o serviço será considerado prestado no local do estabelecimento do prestador.

Ocorre que o direito brasileiro não admite hierarquia entre lei complementar e ordinária[5], e a Lei 13.756/2018 prevalece pelo fato de ser legislação específica sobre o serviço público de loterias na modalidade de apostas de quotas fixas.

Portanto, as empresas que receberam ou vierem a receber autorização para funcionamento com base em regulamentos já expedidos até 24/07/2023 – quando publicada a MP 1.182/2023 – poderão continuar atuando dentro do território do ente federativo responsável. Tal atuação não poderá ser obstada pelos órgãos federais, mas deverá se limitar às pessoas fisicamente presentes ou domiciliadas no território estadual. Caso contrário, a empresa ficará sujeita a todas as penalidades previstas na Lei 14.790/2024.

Além disso, podemos concluir que as leis estaduais acerca das apostas de quota fixa são inconstitucionais, ainda que se reconheça suas boas intenções. Isso decorre da competência legislativa privativa da União sobre loterias e dos entendimentos do STF, inclusive em sede de súmula vinculante.

Aos estados, caberá a possibilidade de regulamentar a aplicação das leis federais em seu território, a nível infralegal, por meio de regulamentos e dos editais e contratos administrativos para a concessão do serviço público lotérico estadual. Tais atividades sempre terão algum caráter normativo, contudo serão vinculadas à lei geral.

De todo modo, outras perguntas permanecem sem respostas: poderão os estados exigir o cumprimento de mais obrigações do que aquelas previstas pela União? Poderá haver diferença entre os requisitos de funcionamento a nível federal e estadual? Em que medida tais requisitos influenciariam eventual apuração da responsabilidade administrativa das casas de apostas esportivas ou, ainda, da responsabilidade penal de seus dirigentes?

Isso é assunto para outro momento.


[1] ARAGÃO, Alexandre Santos. Direito dos Serviços Públicos. Ed. 4. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 257-260.

[2] ARAGÃO, Alexandre Santos. Direito dos Serviços Públicos. Ed. 4. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 257-260.

[3] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Regulação e a questão federativa ‒ caso lei paulista de antenas de celular: adi nº 2.902, STF. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; MOREIRA, Egon Bockmann; GUERRA, Sérgio. Dinâmica da Regulação: estudo de casos da jurisprudência brasileira. Ed. 3. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 201-203.

[4] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Regulação e a questão federativa ‒ caso lei paulista de antenas de celular: adi nº 2.902, STF. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; MOREIRA, Egon Bockmann; GUERRA, Sérgio. Dinâmica da Regulação: estudo de casos da jurisprudência brasileira. Ed. 3. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 201-203.

[5] Sobre o tema, vide: SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: EdUSP, 2021, p. 522-532.

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