Respeitosas divergências sobre o papel das empresas na sociedade

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Recentemente, tive o prazer de assistir a um debate na New York University (NYU) entre dois professores de Direito excepcionais da instituição, Marcel Kahan e Deborah Burand. Marcel Kahan é amplamente reconhecido por sua expertise em Direito societário e governança corporativa, enquanto Deborah Burand é uma referência quando o assunto é Direito financeiro, microfinanças e investimentos de impacto.

O evento fazia parte de uma nova série intitulada Respectfully Dissent, que busca promover discussões instigantes sobre temas legais e políticos relevantes, mesmo diante de perspectivas divergentes entre os participantes.

O espírito dessa iniciativa é resgatar a tradição de discordâncias cordiais entre os juízes da Suprema Corte americana. Ao final de votos divergentes, costuma-se utilizar a expressão “discordo respeitosamente” para sinalizar que, não obstante as diferenças de opinião sobre a matéria, prevalece o respeito mútuo entre os colegas.

No evento em questão, Burand e Kahan expuseram visões distintas sobre a responsabilidade social corporativa e o grau em que empresas devem buscar propósitos além da maximização de lucros para acionistas. As perspectivas oferecidas por ambos foram igualmente valiosas para compreender esse desafio multifacetado.

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Deborah Burand adota uma visão mais otimista, reconhecendo sinais de mudança, como a atualização do propósito corporativo feita pelo Business Roundtable em 2019, que agora inclui não apenas os acionistas, mas também os stakeholders. Ela é uma defensora do uso de diversas ferramentas disponíveis, como as benefit corporations, que são estruturas legais que podem ajudar as empresas a serem mais responsáveis socialmente.

Essas benefit corporations são um modelo que já é aceito em 41 estados dos EUA e permite que as empresas tenham, legalmente, objetivos que visam causar um impacto positivo na sociedade e no meio ambiente, além de atender aos interesses financeiros dos acionistas.

Elas devem detalhar essas metas em seus estatutos e relatórios públicos. Os diretores têm maior flexibilidade para tomar decisões voltadas a esses propósitos de benefício público, mesmo que isso possa reduzir os lucros no curto prazo, sem violar os deveres fiduciários tradicionais, como a diligência, lealdade, boa-fé e a maximização do valor para os acionistas.

Grandes marcas como Patagonia, Danone North America e Ben & Jerry’s adotaram esse modelo orientado por missão de impacto positivo.

Por outro lado, Marcel Kahan se mostrou mais cético quanto a iniciativas internas das empresas para promover responsabilidade social corporativa. Ele argumenta que mudanças reais e efetivas devem vir de fora das corporações, por meio de leis, regulamentações e do poder de pressão de consumidores e colaboradores. Um dos principais receios de Kahan é que dar mais discrição e liberdade para que executivos possam perseguir objetivos sociais e ambientais, na prática, apenas aumentaria o poder desses líderes empresariais sem necessariamente gerar resultados sociais positivos reais.

Uma questão central debatida foi o papel e a influência do lobby corporativo na formulação de políticas públicas e legislações relacionadas à responsabilidade social empresarial. As corporações se envolvem ativamente nessas atividades de lobby, notadamente por meio de entidades que representam os interesses de empresas em um setor específico. Na visão de Kahan, essa influência gera preocupações sobre se realmente representa os interesses mais amplos da sociedade ou apenas os interesses próprios das empresas.

Outra dimensão importante abordada foi a diferença regulatória e de percepção sobre o papel das empresas entre os EUA e a Europa. A União Europeia tende a ser mais reguladora e mais disposta a limitar o poder das corporações em prol de outros stakeholders. Essa divergência de abordagens cria desafios para empresas multinacionais operando em diferentes jurisdições.

De fato, a coordenação e harmonização de regras e ações regulatórias sobre responsabilidade corporativa em um contexto global é um enorme desafio. Como lidar com as variações de sistemas legais, níveis de desenvolvimento e alfabetização digital entre países?

Questionou-se também as responsabilidades das empresas ao se envolverem ativamente em iniciativas legislativas como o Inflation Reduction Act[1] ou regras de divulgação climática. Até que ponto esse engajamento corporativo faz parte legítima de suas ações de responsabilidade social?

Outro ponto de discussão acalorada foi sobre as vantagens, desvantagens e desafios de dar mais voz e poder de decisão aos investidores institucionais e individuais sobre como seus ativos devem ser votados em assembleias corporativas.

Políticas como o proxy choice do BlackRock permitem que alguns investidores institucionais customizem, em certo nível, como suas ações serão votadas em assembleias corporativas. No entanto, esse tipo de iniciativa também traz o risco de grupos de interesse específicos tentarem capturar e influenciar o processo de votação customizada para promover suas próprias agendas.

Os debatedores discutiram as vantagens de aumentar a influência direta dos investidores sobre decisões que impactam seus investimentos, o que poderia tornar as empresas mais responsáveis perante seus acionistas. Porém, existem desafios como a falta de interesse ou conhecimento de muitos investidores individuais e o risco de enfraquecer o poder de contrabalancear a gestão exercido por grandes investidores institucionais.

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Em resumo, é um equilíbrio delicado entre ampliar a voz dos investidores versus manter algum nível de coordenação e controle por parte dos grandes gestores de ativos. Não há uma solução fácil, exigindo uma ponderação cuidadosa dos prós e contras.

Nessa linha, surgiram preocupações sobre potenciais conflitos e riscos de investidores estrangeiros influenciarem indevidamente o processo democrático doméstico por meio de seu poder acionário em empresas locais. Como equilibrar interesses globais e locais em um mundo tão interconectado?

O debate foi enriquecedor, mostrando que não há respostas simples. Ambos concordaram que as empresas são importantes atores econômicos para serem ignorados na busca por soluções para os desafios socioambientais globais. Porém, divergiram sobre os melhores caminhos para alinhar efetivamente o comportamento corporativo aos interesses da sociedade como um todo.

A iniciativa Respectfully Dissent conseguiu promover uma discussão civilizada e instigante entre Burand e Kahan, mesmo com suas visões diferentes. O evento destacou que as divergências não precisam ser destrutivas; ao contrário, quando expressas com respeito mútuo, elas podem enriquecer nossa compreensão e oferecer soluções mais sábias para os desafios que enfrentamos coletivamente. Confira o evento completo.


[1] O Inflation Reduction Act é uma lei federal dos EUA aprovada em 2022, focada em combater as mudanças climáticas, reduzir o déficit fiscal e diminuir custos de saúde, financiada por novos impostos sobre grandes empresas.

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