Riscos na escolha de cláusulas escalonadas de resolução de disputas

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A possibilidade de combinar diferentes mecanismos de solução de conflitos por meio de convenção contratual está diretamente ligada ao conceito de justiça multiportas. A visão da chamada Multidoor Courthouse surgiu na década de 1970, nos Estados Unidos, quando o professor de Harvard Frank Sanders introduziu a “noção de que as disputas poderiam ser resolvidas por uma variedade de abordagens diferentes”[1].

Hoje é plenamente possível e largamente acatada a adoção de cláusulas que combinem diferentes estágios de tratamento do litígio.

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As experiências mais modernas têm mostrado que as fases de negociação direta ou assistida por um mediador permitem identificar os pontos de fortaleza e fragilidade dos litígios, para alavancar melhores resultados na via amigável ou ter uma posição mais assertiva no enfrentamento do litígio com o uso mais acurado de provas e teses testadas na fase negocial.

Assim, parece algo muito consentâneo com a sociedade multicriativa em que estamos inseridos, não se pensar mais em um modelo monolítico e meramente adversarial de solução de controvérsias.

O Dispute Board é um excelente exemplo desse viés criativo e colaborativo dos novos processos de resolução de controvérsias.

Esse comitê, através de seus pareceres, sinaliza às partes, durante a execução do objeto do contrato, o que precisa acontecer para que o mesmo seja fielmente cumprido, tendo ampla aceitabilidade[2].

No que tange às referidas cláusulas escalonadas, que podem combinar todos os modelos aqui citados, vejamos algumas possíveis funcionalidades de tal mecanismo contratual.

Antes é salutar advertir que, no cenário internacional, essas cláusulas, que normalmente vem nas últimas linhas do contrato, são rotuladas pejorativamente como midnight clauses porque são deixadas para ser negociadas e redigidas ao final do dia, quando todas as demais condições do negócio já estão fechadas – por tal razão não é raro depararmo-nos com cláusulas ditas patológicas, incompletas. Assim, é muito recomendável que as empresas já possuam, previamente à qualquer negociação, modelos de cláusulas bem customizados para cada tipo de operação e/ou perfil das partes.

Por outro lado, para contratos de curta duração com obrigações determinadas e contrapostas, verdadeiro qui pro quo, talvez não faça sentido criar uma cláusula escalonada que poderá atrasar desnecessariamente o início do litígio e o desfecho do caso.

Também devem ser considerados nessa avaliação os custos de cada procedimento para verificar se são compatíveis com o valor real ou potencial da controvérsia.

Abaixo um quadro resumindo alguns possíveis caminhos:

A escolha do possível roteiro, diante deste verdadeiro cardápio de opções, dependerá, enfim, de uma criteriosa análise dos advogados internos, externos e dos gestores das empresas para que adotem a solução mais adequada a cada situação.

Não existe, evidentemente, fórmula infalível, porém há situações que se amoldam melhor a um ou outro percurso.

Assim, nos contratos de natureza tipicamente associativa, com expectativa de média e longa duração para retorno do investimento, faz muito sentido pensar em cláusulas escalonadas. São bons exemplos as sociedades empresárias, os contratos de joint venture, de investimentos em startups e afins, assim como os contratos de franquia empresarial e concessão automotiva.

A utilização dos mecanismos autocompositivos como a negociação direta entre os executivos das empresas envolvidas ou a mediação podem ser a válvula de descompressão necessária para salvaguardar a relação comercial entre as partes, evitando-se o litígio.

Acreditamos que modelos de negócio como a franquia empresarial, regulada pela Lei 13.966/19, que expressamente prevê a possibilidade de escolha da arbitragem como método de resolução de disputas entre o franqueador e o franqueado, é plenamente possível, e até recomendável, a adoção de cláusulas que mesclem os métodos auto e heterocompositivos.

Como se trata de operação onde o franqueado adere ao modelo de negócio ditado pelo franqueador, apresentando-se no mercado como uma extensão da empresa titular do empreendimento, a mediação de conflitos é até natural para evitar perdas recíprocas e eventual desgaste frente à clientela comum. Além disso, tanto a mediação como a arbitragem estão debaixo do manto da confidencialidade, o que evita o vazamento de segredos do negócio como pode acontecer nos conflitos judicializados.

Na mesma toada podemos colocar também o contrato de concessão automotiva amplamente regulado pela chamada Lei Ferrari[3] e, por que não, o contrato de representação comercial, também tipificado em lei[4].

Aqui cabe, ainda, uma ressalva no que diz respeito ao potencial enquadramento dessas modalidades contratuais na categoria de contratos de adesão, tema espinhoso e ainda não consolidado em nossos tribunais como se pode depreender do RESP 1.803.752/SP, julgado por maioria pela 3ª Turma do STJ, da relatoria da ministra Nancy Andrighi, de 4/2/2020, do qual ser retira o seguinte trecho:

(…) 5. Os contratos de franquia, mesmo não consubstanciando relação de consumo, devem observar o que prescreve o art. 4º, § 2º, da Lei 9.307/96, na medida em que possuem natureza de contrato de adesão. Precedentes. 6. Hipótese concreta em que à cláusula compromissória integrante do pacto firmado entre as partes não foi conferido o devido destaque, em negrito, tal qual exige a norma em análise; tampouco houve aposição de assinatura ou de visto específico para ela.

Portanto, é recomendável, ainda que por cautela, observar o tratamento especial e apartado da convenção arbitral nos citados tipos contratuais.

Interessante notar que a mediação, de outra sorte, prescinde de tal exigência por conta da sua natureza informal e por decorrer de participação voluntária das partes.

Outra virtuosa composição de modalidades resolutivas de disputas contratuais parte da utilização do Comitê de Resolução de Disputas ou Dispute Board. Este é um mecanismo de solução de divergências, previsto em contrato e acionado durante a sua execução, sempre que solicitado por uma ou ambas as partes, sendo muito aplicado em avenças de longa duração.

Muito embora seja originário do setor da construção civil, o Dispute Board pode muito bem ser utilizado em contratos de outra natureza como grandes projetos de montagem industrial, joint ventures, venture capital, contratos de transferência de tecnologia e de cooperação empresarial em geral.

Caso as disputas persistam, as partes poderão submeter a controvérsia à arbitragem (se prevista em contrato) ou destiná-la a via judicial (se não houver convenção arbitral), tendo as decisões do comitê um peso muito relevante nas decisões que serão tomadas no futuro procedimento adversarial.

Este modelo é um excelente exemplo das vantagens de criarmos diferentes etapas para buscar a solução final do litígio. Com efeito, essas fases funcionam como uma espécie de sistema de filtros, onde as controvérsias são eliminadas ao longo do caminho, tornando o cerne da disputa mais claro para ser solucionado amigavelmente ou por meio de um processo adversarial mais eficiente e expedito.

[1] Consultado em 04/10/24,  https://en.wikipedia.org/wiki/Frank_Sander

[2] Dados da Dispute Resolution Board Foundation indicam que 99% dos conflitos que usam dispute boards são encerrados em menos de 90 dias, e que 98% das disputas são resolvidas pelo mecanismo. Consulta feita em 07/10/2024, https://www.ccbc.org.br/cam-ccbc-centro-arbitragem-mediacao/resolucao-de-disputas/dispute-boards/

[3] Lei 6.729/79

[4] Lei 4.866/65

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