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A médica Ana Maria Malik, coordenadora do FGV Saúde, diz considerar que a saúde suplementar no Brasil é tratada como um “mercado paralelo”, concorrente ao SUS.
Em entrevista ao JOTA, ela afirma que é preciso pensar em um sistema suplementar que se integre ao sistema público, para que mais serviços possam ser oferecidos a mais pessoas.
Para ela, a solução é a conversa entre o público e o privado. “Precisa querer conversar sem querer levar vantagem”, pontua ela.
A entrevista faz parte de um grande projeto patrocinado pela Anahp para colher propostas para a saúde do Brasil, de olho no ano eleitoral. Entrevistamos 53 pessoas para falar de diferentes temas relevantes para saúde como estímulo à inovação, SUS, saúde suplementar e formação de profissionais. As 53 entrevistas serão transformadas em um ebook, que copilará as principais propostas, 50 vídeos de um minuto para serem disponibilizados nas redes sociais e teremos 3 webinars com alguns desses entrevistados para discutir os pontos mais relevantes.
Leia a entrevista completa.
Como repensar a saúde suplementar no Brasil para que ela seja mais eficiente?
A gente tem que pensar, primeiro, no cenário macro. E o cenário macro significa pensar em como, no sistema de saúde, a saúde suplementar pode passar a ser de fato suplementar.
Porque, em algumas áreas, a gente vê que ela se propõe ou se dispõe a fazer concorrência para o setor público no âmbito do SUS e isso é uma coisa que não faz o menor sentido, porque isto significa investir esforços e recursos em atividades e procedimentos que talvez não fizessem sentido. Não faz sentido o mercado suplementar ser um mercado paralelo, que é o que a gente vê.
Quando a gente fala no sistema de saúde, a gente tem que perceber o seguinte: o SUS, que é o sistema de saúde brasileiro, ele é para todos. Um dos seus princípios é a equidade, não a igualdade. Significa oferecer para as pessoas aquilo de que elas necessitam.
Quando a gente olha para a distribuição de todos os serviços pelo território nacional, a gente verifica também que os serviços estão distribuídos, tanto os públicos quanto os privados, com a mesma intensidade da assistência suplementar. Então existe uma grande concentração de disponibilidade de serviços públicos e privados em São Paulo e muito menos disponibilidade no Acre, Roraima e no Amapá.
Quando a senhora fala da equidade, tanto no setor público quanto no setor privado, então a senhora acredita que repensar essa questão seria torná-la mais acessível em todos os lugares?
Não. Eu estou dizendo que não dá para pensar o sistema suplementar separado do sistema público, porque senão existem concentrações em todos os lados. Onde tem mais setor privado no Brasil e onde tem mais serviços de saúde no Brasil, é exatamente onde há mais empregos, porque a grande maioria dos planos de saúde no Brasil é corporativa. E nós estamos falando, portanto, de onde está o dinheiro.
O SUS, por meio do setor público, tem serviços de saúde em cada um dos municípios brasileiros e o setor privado, seja como for, consultórios particulares, operadoras de planos de saúde, hospitais contratados, tem serviços onde há quem pague. E isso, do ponto de vista da população e da distribuição, é de uma injustiça monumental.
Como a gente poderia fazer para combater o desperdício e contornar o estigma de que quem paga tem direito de usar o que quer e quando quer sem uma gestão adequada da carteira de beneficiários?
A primeira coisa é lembrar quem é que paga pela saúde do Brasil. Quem paga pela saúde do Brasil somos você, eu e mais todos os 210 milhões de brasileiros, porque nós pagamos impostos. Nós pagamos também quando vamos diretamente à farmácia ou a um consultório médico. E nós pagamos também quando nós consumimos algum produto que é fabricado pelas empresas, ou algum serviço, porque nesse serviços está embutido o custo da assistência médica suplementar aos funcionários. Então, quem paga somos nós. É interessante, porque, no limite, quanto menos renda, você e eu, ou qualquer outro cidadão brasileiro tenha, uma parte maior da sua renda é destinada à saúde.
Existe quem desembolsa diretamente para o plano de saúde. Agora, no SUS, não há exatamente um contrato. No SUS nós somos brasileiros, nós temos direito a vacina, vigilância epidemiológica, vigilância sanitária e até acesso a serviços públicos de saúde no setor público. Também no SUS que regula a assistência suplementar, quem tem direito assistência suplementar é quem assina um contrato, seja mediante a empresa, seja mediante planos de saúde individuais e aí as regras estão claras.
Como trazer e desenvolver adequadamente conceitos e iniciativas de atenção primária, cuidados coordenados e contínuos na saúde suplementar?
Nós na FGV Saúde fizemos uma pesquisa, porque atenção primária hoje em dia todo mundo fala dela e ela pode ser traduzida de uma série de maneiras. E ela é traduzida de uma série de maneiras. Nós fizemos algumas entrevistas em algumas operadoras de saúde para tentar entender o que elas entendiam por atenção primária e o que no fundo elas ofereciam no âmbito da atenção primária.
O que nós verificamos foi que, em vez de ser uma forma de prestar um cuidado de fato integrado, no qual a atenção primária toma conta do cidadão, muitos dos planos de saúde encaram a atenção primária como uma parte que elas oferecem.
Nós sabemos que no mundo inteiro existe uma grande crítica a como funcionam os sistemas de saúde. Eles funcionam de maneira fragmentada: tem pedacinhos, pedacinhos, pedacinhos, pedacinhos. A ideia da atenção primária, se quando bem feita – e não se pode dizer que no setor público ela sempre seja bem feita também -, mas é que a atenção primária justamente faria a integração.
Se você precisa de um transplante que é um procedimento super complexo, a atenção primária que vai te mandar para o especialista que vai te colocar na lista do transplante e depois que você fizer o transplante, seja no hospital público seja no hospital privado, a atenção primária continuará tomando conta de você e verificando se você está se comportando adequadamente para cuidar do seu novo órgão. Eu peguei o exemplo do transplante é uma coisa extremamente complexa que as pessoas não associam à atenção primária. Mas de fato, em tese, o cuidado começa lá.
Como é que a gente resolve isso? Conversando. O setor público e o setor privado não conversam. Durante a pandemia a gente teve um problema de falta de diálogo entre o setor público no federal, no estadual e nos municipais. Tudo bem. Mas, em geral, nós temos problemas também na conversa entre o setor público e setor privado. Cada um quer fazer o que acha que deve fazer, em vez de discutir quais são as necessidades da população e como é que a gente vai cuidar da melhor maneira possível da saúde da população.
Foi um pouco do que a senhora falou no início do setor privado querer competir com o SUS, né?
Se todo mundo faz a mesma coisa, vai ter alguma coisa que ninguém vai fazer, porque as pessoas vão colocar os seus recursos no que aparentemente tem uma relação custo-benefício mais apropriado. Mas o resultado mais importante é a saúde da população.
Porque nós tratamos principalmente no nosso sistema de saúde, seja ele público seja privado, exceto, por exemplo, na Saúde da Família, nós tratamos de doença e dos seus sintomas, mas não tratamos da saúde da sua manutenção.
Para senhora, qual seria a principal iniciativa a ser adotada pelo governo em relação a saúde suplementar, mas resumindo em uma única proposta? Dá para fazer isso?
Dá. Precisa conversar e precisa conversar desarmado, precisa querer conversar. Precisa querer conversar sem querer levar vantagem. Porque, hoje em dia, na discussão nova, das novas legislações, está acontecendo uma tentativa de levar vantagem. E enquanto se quiser levar vantagem sobre o pedaço, quem não leva vantagem é o cidadão.