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Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

Segurança jurídica e precedentes tributários

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É com grande entusiasmo que damos as boas-vindas à nova coluna do JOTA, em parceria com a Aconcarf, de frequência quinzenal, buscando aproximar os profissionais e os acadêmicos dos julgamentos realizados no Carf. Desonerado de viés político, este espaço tem como ideal fomentar o conhecimento da matéria tributária e fortalecer a importância do debate realizado no âmbito do contencioso tributário.

Penso não haver dúvidas que o contencioso tributário deve estar pautado sob a segurança jurídica, em todas as análises e julgamentos, dando importante destaque à aplicação dos precedentes vinculantes tributários no âmbito do Carf.

O tema recebeu novo contorno em janeiro deste ano, com a entrada em vigência do novo Regimento Interno do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (RICARF 23), aprovado pela Portaria do Ministério da Fazenda 1.634, de 21 de dezembro de 2023 que, sem mencionar o termo precedentes tratou, em disposições diversas às do Código de Processo Civil e do anterior Regimento Interno, sobre o ao momento em que o processo no Carf, que trate da mesma matéria afeta ao julgamento sob o rito dos repetitivos no STF ou no STJ, deve ser sobrestado e quando há a aplicação obrigatória da decisão lá proferida.

O anterior RICARF (Portaria MF 343/2015) preceituava, de forma simples, que era vedado ao julgador afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade, salvo se tivesse sido declarado inconstitucional por decisão definitiva plenária do STF, nos moldes da norma extraída do art. 26-A, do Decreto 70.235/72, com a redação dada pela Lei 11.941/20091, e que as decisões definitivas do STF e do STJ na sistemática da repercussão geral ou dos recursos repetitivos, vinculavam os conselheiros do Carf, que ficavam obrigados a aplicá-las.

O novo RICARF manteve a adesão aos termos do art. 26-A do Decreto 70.235/72. Por outro lado, inovou ao dizer que essa regra não será aplicada nos casos em que houver recurso extraordinário, com repercussão geral reconhecida, pendente de julgamento pelo STF, sobre o mesmo tema decidido pelo STJ, na sistemática dos recursos repetitivos e manteve a omissão quanto aos contornos vinculantes dos precedentes, mantendo a dúvida, para muitos já superada, de qual é a parte vinculante do precedente, se é a tese jurídica fixada, a ementa, as razões de decidir ou a íntegra da decisão.

Da pesquisa que realizo em matéria de precedente, penso estar cristalizado o entendimento segundo o qual estamos vinculados à aplicação das razões de decidir do precedente, a chamada ratio decidendi. Contudo, não podemos inferir que o cenário é cristalino para todos os conselheiros do Carf e profissionais que lá atuam, de modo que poderia ter o novo RICARF avançado um pouco mais para esclarecer a questão.

Tratando de maneira bem breve sobre o sistema de precedentes, tem-se que, nos países de tradição civil law, a lei2, caracterizada como norma jurídica de comando geral e abstrato, é, a priori, a principal fonte do direito, e propõe-se a resolver uma variedade de casos futuros3. Diferentemente, o precedente, fonte primária nos países de tradição commom law, tem como ponto de partida um caso concreto, relacionando os fatos do caso à regra de solução definitiva do caso. As razões de decidir formam, assim, a norma jurídica resultante da interpretação dada pela decisão judicial ao direito4, ou seja, a regra universalizável a ser usada como critério de decisão em um caso posterior5.

A adoção do sistema de precedentes tem como fundamento garantir a coerência e a unidade nas soluções jurídicas com o objetivo de conceder isonomia e segurança jurídica. De fato, com a vinculação dos julgadores aos precedentes, é possível evitar decisões divergentes no próprio órgão administrativo e, de modo mais amplo, para todos os contribuintes.

Com relação à inovação trazida pelo RICARF, quanto à não aplicação da regra do art. 26-A do Decreto 70.235/72 nos casos em que houver recurso extraordinário, com repercussão geral reconhecida, pendente de julgamento pelo STF, sobre um mesmo tema já decidido pelo STJ, na sistemática dos recursos repetitivos, importante esclarecer aqui que, apesar dos regimentos internos serem fontes de direito processual, os seus limites devem ser investigados de modo que o poder normativo seja exercido em conformidade com os parâmetros legais e constitucionais estabelecidos6.

Questiona-se, com isso, se poderia um ato normativo secundário (a Portaria que aprovou o novo RICARF) determinar a não aplicação de uma norma primária, em um determinada circunstância. Enquanto isso, o que se sabe é que esta inovação parece ter como fundamento um recente caso que esteve no trajeto STF-Carf e diz respeito à incidência da contribuição previdenciária sobre o terço constitucional de férias.

Em 2020, o STF proferiu acórdão de mérito no Tema 985 (Recurso Extraordinário 1.072.485/PR, com repercussão geral reconhecida) e fixou a seguinte tese: “É legítima a incidência de contribuição social sobre o valor satisfeito a título de terço constitucional de férias”.

Posteriormente ao acórdão de mérito, a Associação Brasileira da Advocacia Tributária (ABAT), na condição de amicus curiae, requereu a suspensão nacional de todos os processos sobre a matéria, uma vez existir nos autos embargos de declaração visando a modulação dos efeitos da decisão, ao passo que os Tribunais Regionais Federais vinham aplicando, de forma ampla, o Tema 985. O fato é que, em 2014, o STJ havia decidido, sob a sistemática dos recursos repetitivos (Tema 479), a mesma matéria e traçou conclusão oposta à da Suprema Corte: “Não incide contribuição previdenciária a cargo da empresa sobre o valor pago a título de terço constitucional de férias”7.

Diante do pedido feito pela ABAT, em meados de 2023, o ministro André Mendonça, atual relator do Tema 985, proferiu decisão determinando a suspensão de todos os processos judiciais e administrativos – o que inclui o Carf – versando sobre a natureza jurídica do terço constitucional de férias, para fins de incidência da contribuição previdenciária patronal.

Nesse ponto, ainda que discutida a constitucionalidade da inovação realizada pelo RICARF frente à ausência de amparo legal, é preciso dizer que trouxe guarida à segurança jurídica e proteção à coerência sistêmica.

Se a regra estabelecida pelo RICARF 23 já fosse existente, sinalizando que, caso o STJ já tenha realizado o julgamento de um determinado Tema, sob a sistemática dos recursos repetitivos, e, posteriormente, o STF reconheça a existência de repercussão geral sobre a mesma matéria, o julgador do Carf não poderia aplicar o precedente vinculante do STJ, mesmo que o STF ainda não tenha proferido qualquer decisão sobre a matéria, certamente a decisão final a ser proferida no Tema 985, após o julgamento do ED’s, traria maior segurança jurídica e seria aplicada de forma isonômica dentro do sistema tributário.

Por fim, mencionamos mais uma regra implementada pelo RICARF 23, segundo a qual a decisão pela afetação de tema submetido a julgamento segundo a sistemática da repercussão geral ou dos recursos repetitivos não permite o sobrestamento de julgamento no âmbito do Carf, contudo o sobrestamento do julgamento será obrigatório nos casos em que houver acórdão de mérito ainda não transitado em julgado, proferido pelo STF e que declare a norma inconstitucional ou, pelo STJ, declarando a ilegalidade da norma.

Apesar da razoabilidade do dispositivo, também parece careces de respaldo legal.

O Código de Processo Civil, aplicável no Carf quando a norma for omissa ou incompleta, menciona apenas que, após a afetação de um recurso especial ou extraordinário para julgamento sob o rito dos repetitivos, o relator do feito no tribunal superior determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional. O anterior Regimento Interno do Carf (de 2015), por sua vez, havia suprimido disposição existente no RICARF anterior a ele (de 2009), que determinava o sobrestamento dos julgamentos dos recursos sempre que o STF também sobrestasse o julgamento dos recursos extraordinários da mesma matéria, até que fosse proferida a decisão.

Até a vigência do RICARF 23, não havia qualquer disposição expressa determinando o sobrestamento do processo no âmbito administrativo em face do julgamento em andamento de um precedente vinculante.

Não obstante, para que efetivamente ocorra uma uniformização da jurisprudência e estabilização das relações jurídicas, a aplicação dos precedentes vinculantes também deve ocorrer no âmbito dos tribunais administrativos, evitando que a mesma demanda seja discutida no processo administrativo e, posteriormente, junto ao Poder Judiciário.

Feita essa breve análise, concluímos com a ideia de que a adoção do sistema de precedentes vinculantes merece guarida, se for apto a garantir a segurança jurídica, o interesse social e a igualdade na aplicação do precedente. Do contrário, a importação do sistema de precedentes, oriundo da commom law, desagua em retrocesso em nosso sistema tributário. Assim, tenho que os precedentes tributários despontam como aliados ao processo de redução da alta litigiosidade tributária quando, e se, bem empregados, desde o processo de formação nos Tribunais Superiores, a aplicação no âmbito do processo administrativo tributário.

1 O art. 26-A do Decreto 70.235/72, com a redação dada pela Lei 11.941/2009, diz que é vedado ao julgador afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade, salvo se já tiver sido declarado inconstitucional por decisão definitiva plenária do Supremo Tribunal Federal.

2 A título de passagem, informa-se que a lei pode e deve ser lida como norma. Ronald Dworkin e Robert Alexy, referenciais teóricos do pós-positivismo, consagraram, em defesa da normatividade dos princípios, que estes, ao lado das regras, são espécies de normas jurídicas, de grande importância, sobretudo como critério de decisão de casos difíceis. Da teoria de ambos, extrai-se que a norma é gênero que compreende duas espécies: as regras (leis) e os princípios. (BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 259).

3 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. A dificuldade de se criar uma cultura argumentativa do precedente judicial e o desafio do Novo CPC. In: Precedentes, coordenadores Fredie Didier Jr (et al). Salvador: Juspodvm, 2016, p. 275.

4 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil: teoria do processo civil, volume 1 (livro eletrônico). 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 42.

5 TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Revista de Processo: RePro, v. 36, n. 199, p. 139-155, set. 2011.

6 OLIVEIRA, Paulo Mendes de. O Poder Normativos dos Tribunais: Regimentos Internos como Fonte de Normas Processuais. Civil Procedure Review, v. 11, n. 2: mai.-ago. 2020, p. 11-67.

7  REsp 1.230.957-RS, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, julgado em 26/2/2014.

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