Sentença da Corte IDH contra Peru aperfeiçoa padrões sobre liberdade sindical

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“Foram anos de incerteza, sofrimento e desesperança. Foi devastador. Perdi meu emprego, minha estabilidade financeira, e tive que criar minha filha sozinha. Não consegui encontrar outro trabalho e acabei vendendo móveis para sobreviver. Minha filha teve problemas psicológicos devido ao impacto disso tudo,” disse Eugenia Higueras, uma das vítimas do caso Sindicato Único de Trabalhadores de ECASA vs. Peru, durante a audiência pública da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).  Em 6 de junho de 2024, a Corte condenou o estado peruano a uma série de reparações aos trabalhadores da então estatal ECASA, do ramo alimentício. 

A condenação estabelece precedentes significativos para toda a América Latina, segundo Estêvão Mallet, professor da Universidade de São Paulo (USP). “É uma decisão marcante e que vai compor o hall dos precedentes mais significativos da Corte, porque enfrenta vários aspectos muito sensíveis para o Direito do Trabalho”. Alguns dos principais destaques são o reconhecimento explícito de que o direito à negociação coletiva é uma extensão da liberdade sindical e a autonomia das entidades sindicais e a necessidade de proteger seus dirigentes de ameaças e intimidações. 

Além disso, a sentença reconhece a “dupla faceta” da liberdade sindical, que reforça tanto o direito de fundar sindicatos sem aprovação estatal quanto a liberdade individual de aderir ou não a essas entidades. Na decisão, a Corte também estabeleceu dois postulados centrais: as normas coletivas derivadas da negociação devem ser reconhecidas como juridicamente válidas e eficazes, e é necessário garantir a implementação concreta do que foi pactuado – evitando que a inércia do caso SUTECASA, que se arrastou por décadas, se repita.

O ministro Aloysio Corrêa da Veiga, presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), afirmou ao JOTA que a decisão “revela aperfeiçoamento dos standards sobre liberdade sindical em sua dimensão não somente formal, mas material, com o efetivo respeito às normas coletivas autônomas, reconhecidas, em toda a sua extensão, inclusive política, como instrumento prioritário de resolução de conflitos coletivos”. 

O caso

A ECASA (Empresa Comercializadora de Alimentos S.A.) era uma estatal peruana dedicada à comercialização de alimentos. Ela desempenhava um papel importante no setor alimentício do Peru, operando em todo o território nacional e empregando milhares de trabalhadores.

No contexto das reformas neoliberais implementadas pelo governo de Alberto Fujimori na década de 1990, a ECASA foi incluída em programas de privatização. Essas reformas tinham como objetivo reduzir o tamanho do setor público, atrair investimentos estrangeiros e estabilizar a economia, mas, ao mesmo tempo, resultaram em demissões em massa e no enfraquecimento de direitos trabalhistas.

De acordo com os documentos do caso, os trabalhadores da ECASA foram profundamente afetados pelos Decretos Supremos 057-90-TR e 107-90-PCM, que limitaram aumentos salariais e benefícios coletivamente negociados de mais de 2 mil trabalhadores. A empresa acabou sendo liquidada, o que deixou muitos trabalhadores sem garantias trabalhistas e em situação de vulnerabilidade econômica.

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A desestruturação da ECASA não apenas dissolveu os contratos e benefícios acordados, mas também marcou o fim de uma era para o setor estatal no Peru. Segundo a Corte Interamericana, “essas reformas foram vendidas como necessárias para a recuperação econômica, mas o preço foi a destruição dos direitos mais básicos de trabalhadores que já viviam à margem”.

Em resposta, o Sindicato Único de Trabalhadores de ECASA (SUTECASA) ingressou com uma ação de amparo em 1991. Em 1993, a mais alta instância da Justiça peruana declarou os decretos inconstitucionais e determinou a recuperação dos benefícios, mas o processo foi arquivado em 2021.

Contudo, a sentença nunca foi cumprida. “Esperávamos que a Justiça nos desse o que era nosso por direito. Mas ao longo dos anos, vimos a inércia prevalecer e nossas esperanças se desfazerem,” disse Eugenia na audiência. A falta de cumprimento das decisões judiciais relacionadas à ECASA, segundo a Corte, gerou uma violação sistemática dos direitos humanos dos trabalhadores envolvidos​.

“A negociação coletiva é mais do que um instrumento jurídico. É um pilar essencial da democracia e da dignidade humana,” afirmou o brasileiro Rodrigo Mudrovitsch, vice-presidente da Corte, em seu voto concorrente.  “A liberdade de associação é pressuposto não apenas da liberdade sindical em sentido amplo, mas do próprio direito à negociação coletiva, uma vez que o exercício desse direito pressupõe a livre manifestação de vontade das partes, que deve ser desincumbida de qualquer pressão, temor ou risco de ameaça para que os procedimentos negociais possam cumprir seu efetivo papel. Se a liberdade sindical é corrompida, a negociação coletiva pode tornar-se expediente ilusório”. 

O juiz Mudrovitsch também aponta que a Corte IDH reiterou a aplicabilidade do do direito à negociação coletiva a funcionários tanto do setor público quanto do setor privado e o dever estatal de priorizar a negociação coletiva em detrimento de soluções que repousavam na intervenção da administração pública ou do Poder Legislativo. “Isso implica, igualmente, proteger os empregados do setor público contra atos antissindicais. É possível, nesse particular, cogitar verdadeiro dever reforçado por parte do Estado, já que se trata, nessas hipóteses, de trabalhadores que atuam dentro da própria estrutura do Poder Público. Essa perspectiva é particularmente relevante no caso concreto, uma vez que as vítimas eram funcionárias de companhia estatal”.

Sentença

A Corte IDH, após analisar o caso, concluiu que o Estado peruano violou diversos artigos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, como a proteção judicial e execução de sentenças (artigos 8 e 25), a liberdade sindical e direito à negociação coletiva (artigo 26), e o direito à propriedade privada (artigo 21), já que a não execução da sentença impactou diretamente o patrimônio dos trabalhadores, configurando violação ao direito à propriedade.  

A sentença determinou reparações financeiras e estruturais, incluindo indenizações por danos materiais e imateriais, de modo que cada trabalhador deve receber US$ 60.000 por danos materiais e US$ 150.000 por lucros cessantes. Além disso, a Corte ordenou medidas de não repetição, como a criação de programas de capacitação para juízes e servidores públicos sobre a execução de sentenças trabalhistas. O estado tem um prazo de seis meses para cumprir as determinações. 

“Há uma dificuldade real dessas decisões serem realmente impostas aos países signatários, depende de uma autovinculação do estado”, admite Ingo Sarlet, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). “Mas há um efeito moral, político, que pode levar até a inibições de negócios, investimentos, diversas consequências, especialmente com a agenda da vinculação das empresas aos direitos humanos fundamentais crescendo”. 

Caso o Peru não cumpra a decisão, pode enfrentar monitoramento mais rigoroso pela Corte Interamericana, ou, mais radicalmente e menos provavelmente, medidas de pressão de órgãos como a Organização dos Estados Americanos (OEA), incluindo sanções políticas ou restrições a financiamentos internacionais.

Peru

Não é coincidência que o Peru seja alvo de outras condenações parecidas na Corte IDH. A década de 1990 no Peru foi marcada por instabilidade política e econômica, com hiperinflação, altas taxas de desemprego e um cenário de crise generalizada, o que agravou a situação frágil dos trabalhadores. O golpe de Estado de 1992, promovido por Fujimori, intensificou a centralização do poder no Executivo, dificultando ainda mais o ambiente para sindicatos e trabalhadores. 

Outro caso semelhante ao de ECASA foi o pioneiro em termos de direitos sindicais e liberdade de expressão na Corte IDH em 2017, conhecido como “Caso Lagos del Campo vs. Peru”. Ele envolveu a demissão de um trabalhador que, em 1989, criticou publicamente sua empresa estatal de manufatura de pneus em entrevista a um jornal local em que defendia condições de trabalho melhores. A Corte reconheceu que a demissão foi uma violação da liberdade de expressão e da liberdade sindical, elementos interligados à negociação coletiva.

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O Peru ainda acumula outras condenações em ações similares na Corte IDH. Também em 2017, o órgão condenou o estado pelo caso de trabalhadores do setor marítimo cujas compensações financeiras determinadas por decisões judiciais permaneceram sem execução por mais de 25 anos, no caso “FEMAPOR vs Peru”. Em outra situação, envolvendo trabalhadores arbitrariamente despedidos do Congresso peruano após uma reestruturação administrativa em 1997, também houve reconhecimento dos direitos, e, com a inércia judicial, a Corte condenou o Peru pela ausência de um recurso judicial efetivo e pela demora excessiva.

Inércia judicial

O agravante de casos que se arrastam há décadas não é um problema exclusivo do Peru ou de outros países latinos, como o Brasil, afirma Mallet. Isso faz com que cortes internacionais possam ser um meio de lidar com esse problema. Em geral, para que um caso seja julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, é necessário que todas as instâncias nacionais disponíveis e eficazes tenham sido esgotadas. A lógica por trás dessa regra é respeitar a soberania dos Estados e permitir que o sistema jurídico interno resolva as violações antes de recorrer ao sistema internacional.

“É um equilíbrio delicado que vem sendo bem administrado pela Corte, de forma a garantir a realização de direitos humanos e fomentar a perspectiva comunitária inerente ao direito internacional”, diz Veiga, presidente do TST. “A Corte IDH parece ter encontrado a “justa medida” e sua eficiência se reflete no incremento de sua relevância, como vemos nos dias atuais”. 

Existem exceções à regra e, dependendo das circunstâncias do caso, o esgotamento de recursos internos pode ser dispensado em casos em que, por exemplo, o sistema judicial interno não oferece garantias de imparcialidade, independência ou devido processo (algo comum em regimes autoritários, como o qual o Peru viveu durante o fujimorismo), ou se o caso se prolonga excessivamente, sem uma decisão definitiva.

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E o Brasil com isso?

O perfil dos casos brasileiros que envolvem o mundo do trabalho e chegam à Corte IDH é distinto dos peruanos – geralmente envolvem casos de exploração análoga à escravidão e discriminação. Um exemplo é o caso Hacienda Brasil Verde vs. Brasil, julgado em 2016, que envolveu 85 trabalhadores encontrados em condições degradantes em uma fazenda de gado no estado do Pará e foi a primeira vez em que a Corte aplicou o artigo 6 da Convenção Americana, que proíbe trabalho escravo e forçado. Em andamento, há o caso “Dos Santos Nascimento e Ferreira Gomes vs. Brasil”, que trata de um caso de alegação de discriminação racial e de gênero no setor de trabalho doméstico. 

Mas isso pode mudar, e decisões como a envolvendo a ECASA podem ser significativas. “O nosso leque de direitos dos trabalhadores é muito mais amplo do que os tratados, mas a tendência mundial de flexibilização é importante, e precedentes como os estabelecidos por essa decisão podem ser importantes caso o Brasil se veja, mais cedo ou mais tarde, com ações que sigam essa linha”, diz Ingo Sarlet. 

Segundo Veiga, do TST, o “Brasil tem cada vez mais reconhecido a relevância da jurisprudência internacional, quer por meio de recomendações do CNJ, quer pelo fomento da cultura jurídica nesse sentido”. “Tudo isso permite a propagação e universalização de conceitos que antes eram relegados a uma especialidade, um nicho, permitindo sua aplicação e influência prática”, diz. 

“Os caminhos indicados pela Corte IDH, extensíveis a todos os Estados do Sistema Interamericano como res interpretata, sem dúvida poderão contribuir para o fortalecimento dos espaços de auto-organização da sociedade civil e para a construção de maior autonomia das organizações laborais, a fim de que se vejam cada vez mais capacitadas para exprimirem sua vontade, de forma livre de pressões indevidas e da ingerência estatal, inclusive judicial”, conclui o juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch, em seu voto.

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