No mundo atual, a percepção das dificuldades não pode mais se dissociar do remanejamento dos quadros funcionais.
Pensando mais a longo prazo, a percepção das dificuldades possibilita uma melhor visão global dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

pensamento do dia

Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

SOS – Salvem nossos mandatos

Spread the love

A sequência de código Morse “SOS” tem origem nos regulamentos de rádio marítimo da Alemanha. Pelo uso popular, devido ao seu uso em emergências, passou a ser associada a frases como save our souls e save our ship. Indica informalmente uma crise ou a necessidade de ação. No que diz respeito à necessidade de preservação da vontade popular conferida a parlamentares democraticamente eleitos, a situação atual no Brasil caminha para uma grave crise, sendo emergencial que, parafraseando a expressão, “Salvem Nossos Mandatos!”.

Isso porque o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ao apreciar a Tutela Cautelar Antecedente 0600674-17.2023.6.00.0000, proveniente do município de Alto Santo (CE), entendeu – a partir de interpretação inédita do artigo 224 do Código Eleitoral (CE)[1] c/c o § 5º no art. 20 da Resolução 23.609/2019/TSE[2] – que a perda do mandato parlamentar no Brasil poderá ocorrer de forma automática e por fato de terceiro, sem que o representante político eleito tenha cometido qualquer falta ou ilícito – seja de origem ética, penal ou administrativa. Demais disso, a perda do mandato ocorrerá sem que seja garantido ao parlamentar, ou mesmo ao partido político pelo qual foi eleito, a possibilidade de defesa ou de manifestação em processo próprio e individualizado.

Com efeito, não pretendemos aqui fazer a defesa do caso concreto. O presente artigo tem por objetivo, em verdade, demonstrar a inconstitucionalidade da renovação total de mandatos parlamentares nas eleições proporcionais por aplicação do § 5º no art. 20 da Resolução nº 23.609/2019/TSE c/c os termos do artigo 224 do CE, a partir do histórico legislativo da norma do CE, do direito eleitoral entabulado na Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH), bem como a partir da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF).

Análise legislativa do artigo 224 do CE

A análise histórica das discussões que antecederam a publicação do CE revela que a regra do artigo 224 sempre foi vocacionada para as eleições majoritárias, ante a expressa menção ao termo “candidato” nas tratativas de elaboração da norma. É o que se verifica do parecer do relator na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), deputado Ulysses Guimarães[3]:

Art. 224. Verificando que os votos das seções anuladas e daquelas cujos eleitores foram impedidos de votar, em todo o país, poderão alterar a classificação de candidato, ordenará o Tribunal Superior a realização de novas eleições.

Desde então, o artigo 224 do CE foi modificado apenas uma única vez, já sob a égide da Constituição de 1988, pela reforma eleitoral promovida pelo PL 5735/2013. No que respeita ao tema, assim se manifestou o eminente deputado Paes Landim (PTB-PI) em seu Parecer na Comissão de Constituição e Justiça:

No âmbito do Código Eleitoral, manteremos a proposta de alteração da regra prevista no art. 224, no sentido de que sejam realizadas novas eleições sempre que forem anulados os votos do candidato mais votado em eleições majoritárias, independentemente da margem de votos obtida. Como se sabe, de acordo com as regras em vigor, a Justiça Eleitoral somente convoca novas eleições se o candidato mais votado tiver obtido mais de cinquenta por cento dos votos, e em caso contrário, declara vencedor o segundo colocado.

Consoante se verifica da análise legislativa do artigo 224 do CE, seja a partir do conteúdo da proposta original de 1965, seja no que respeita os debates havidos no Congresso sobre a reforma eleitoral de 2015, é possível afirmar que nunca houve deliberação parlamentar sobre a aplicação do preceito normativo às eleições proporcionais.

Noutras palavras, a intenção da regra do artigo 224 do CE sempre foi a de determinar um modelo de renovação eleitoral – a partir da verificação de nulidades no pleito – direcionada ao sistema majoritário, sendo inequívoca a constante referência a “candidatos” ou mesmo a explícita nominação ao sistema majoritário de votação.

Por oportuno, a referência ao termo “eleições majoritárias” do parágrafo 3º do artigo 224 do CE se deu, em verdade, a título de reforço argumentativo – em detrimento da melhor técnica legislativa. Jamais especificou determinada realidade do caput que poderia ser comum a ambos os sistemas. A mens legis do parágrafo 3º era – consoante os debates – modificar a realidade então vigente na jurisprudência do TSE, no sentido de impedir que candidatos segundos colocados em eleições majoritárias pudessem ser alçados à condição de chefe do Poder Executivo.

Anotações sobre a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) e do STF

No continente europeu, o Primeiro Protocolo Adicional à Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH), em seu Artigo 3°, estabelece os direitos de participação política que formam a base dos direitos que enquadram o processo eleitoral[4]. No ponto, o sistema europeu é particularmente conciso em sua redação. A CEDH, por seu turno, é interpretada pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), cujas sentenças juridicamente vinculantes contribuem para a construção dos padrões de hard law do direito eleitoral.[5]

No que respeita à perda automática do mandato parlamentar, o TEDH decidiu que o Artigo 3° do Protocolo nº 1 da Convenção fora violado quando deputados turcos filiados a um partido político – que foi proscrito após as eleições por defender o desmembramento do território nacional – foram automaticamente privados de seu status parlamentar[6].

O TEDH considerou que a medida adotada no caso, ou seja, a dissolução imediata e definitiva do partido pelo qual foram eleitos e a proibição imposta aos membros do partido de exercerem seus mandatos, é de natureza extremamente grave. A Corte considerou que a sanção imposta aos parlamentares turcos não poderia ser considerada proporcional ao propósito invocado pela Turquia, que essa medida era incompatível com a própria essência do direito de ser eleito e de exercer um mandato e que o país infringira o poder soberano que elegeu os deputados.

No Brasil, por oportuno, a Constituição em nenhum momento autoriza que a Justiça Eleitoral, em iniciativa processual relativa a terceiros – e sem chance de defesa – possa interferir na composição de um órgão do Poder Legislativo.

No ponto, é bem conhecida a jurisprudência do STF no que respeita ao não condicionamento da perda de mandato de deputados estaduais e de governadores ao trânsito em julgado de decisões proferidas pela Justiça Eleitoral.[7] Na hipótese, porém, os parlamentares e governadores em questão são, todos, submetidos ao crivo do devido processo legal e do contraditório perante a Justiça Eleitoral a têm oportunizada a ampla defesa em processo específico.

Noutra perspectiva, em se tratando de condenação criminal transitada em julgado, por ilícitos cometidos por deputados e senadores, também a jurisprudência do STF entende que não haverá perda automática de mandato pois ela será, nos termos do art. 55, VI, § 2º, da Constituição, decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa´. Vê-se, pois, que o Texto Magno é claro ao outorgar, nesse caso, à Câmara dos Deputados e ao Senado a competência de decidir, e não meramente declarar, a perda de mandato de parlamentares das respectivas Casas”.[8]

É de ver-se, portanto, que mesmo em se tratando de condenação de parlamentares em ilícitos graves, onde já há decisão condenatória definitiva – lastreada por todas as garantias do processo legal perante o Poder Judiciário – ainda assim há de prevalecer a necessidade de respeito à separação de poderes.

Conclusões

A perda de um mandato parlamentar em sistemas democráticos deve ocorrer apenas em hipóteses restritas e a partir de expressa previsão constitucional, a fim de que seja privilegiado e protegido o exercício da representação política resultante de um sistema de eleições periódicas, livres e justas.

Como se infere, o precedente do TSE, adotado em sede cautelar, constitui grave vulneração da representação política a partir de uma interpretação ampliativa e equivocada de uma norma pré-constitucional, que possibilitou, na hipótese, alijar do Parlamento representantes políticos de partidos que cumpriram com a regra do jogo no que respeita às cotas de gênero e foram legitimamente chancelados pelo voto popular.

Em definitivo, a renovação total de mandatos parlamentares nas eleições proporcionais, por aplicação do § 5º no art. 20 da Resolução nº 23.609/2019/TSE c/c os termos do artigo 224 do CE, foge totalmente de seu escopo legislativo, não decorre da base constitucional hoje vigente no país, vai de encontro ao direito conferido a parlamentares eleitos no sistema europeu de proteção dos direitos fundamentais e contraria consolidada jurisprudência do STF.

SOS “Salvem Nossos Mandatos”!

[1] Código Eleitoral. Art. 224: Se a nulidade atingir a mais de metade dos votos do país nas eleições presidenciais, do Estado nas eleições federais e estaduais ou do município nas eleições municipais, julgar-se-ão prejudicadas as demais votações e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias.

[2] Art. 20. Os pedidos de registro serão compostos pelos seguintes formulários gerados pelo CANDex: … § 5º A conclusão, nas ações referidas no § 1º deste artigo, pela utilização de candidaturas femininas fictícias, acarretará a anulação de todo o DRAP e a cassação de diplomas ou mandatos de todas as candidatas e de todos os candidatos a ele vinculados, independentemente de prova de sua participação, ciência ou anuência, com a consequente retotalização dos resultados e, se a anulação atingir mais de 50% (cinquenta por cento) dos votos da eleição proporcional, a convocação de novas eleições.

[3] Disponível em https://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD26MAI1965SUP.pdf#page=4; Acesso em 4 de janeiro de 2024.

[4] CEDH. Artigo 3° Direito a eleições livres. As Altas Partes Contratantes obrigam-se a organizar, com intervalos razoáveis, eleições livres, por escrutínio secreto, em condições que assegurem a livre expressão da opinião do povo na eleição do órgão legislativo.

[5] ÚBEDA DE TORRES, A. (2020). Los estándares de derecho electoral a la luz de la jurisprudencia del Tribunal Europeo de Derechos Humanos y del Código de Buenas Prácticas de la Comisión de Venecia Teoría y realidad constitucional, 2020 (46), p. 564.

[6] TEDH de 11 de junho de 2002, Sadak et al. v. Turquia.

[7] STF, ADI 5.007, rel. Min. Cármen Lúcia, j. 11-4-2019, P, DJE de 26-6-2019.

[8] STF, AP 996, rel. Min. Edson Fachin, voto do min. Ricardo Lewandowski, j. 29-5-2018, 2ª T, DJE de 8-2-2019.] Vide AP 694, rel. min. Rosa Weber, j. 2-5-2017, 1ª T, DJE de 31-8-2017.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *