Suspensão de segurança tem ameaçado direitos fundamentais, diz estudo

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A suspensão de segurança, prevista na Lei 12.016/2009, é um dispositivo processual que concede ao presidente dos Tribunais de Justiça a prerrogativa de suspender decisões judiciais, desde que haja risco de “grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia pública”. Ela pode ser acionada por entes públicos ou pelo Ministério Público, contra liminares concedidas em mandados de segurança nas ações movidas contra o poder público. No entanto, nos últimos dez anos, na maioria das vezes em que foi usado, o mecanismo acabou inviabilizando a garantia de direitos fundamentais, afetando especialmente populações vulneráveis, como pessoas encarceradas e pacientes do sistema de saúde pública. Essa é a conclusão de um relatório que analisou mais de 5.400 casos na última década em 16 estados do país, feito pela plataforma JUSTA, um centro de pesquisa voltado à economia política da Justiça. O estudo utilizou dados fornecidos pelos próprios Tribunais de Justiça, coletados via pedidos de acesso à informação. Confira a íntegra do relatório aqui.

No estado de São Paulo, por exemplo, em 100% dos casos que envolviam direitos de população carcerária entre 2013 e 2020, a suspensão de segurança inviabilizou a garantia de direitos – mesmo com o reconhecimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o estado de coisas inconstitucional da situação penitenciária. Por exemplo, no estado, uma suspensão de segurança afetou decisões que garantiam atendimento médico em unidades prisionais. Outra suspendeu determinações que sanavam superlotações em penitenciárias e centros de detenção provisória. Em outra situação, a pedido do governo estadual, uma suspensão de segurança afetou uma decisão que exigia que o estado providenciasse, em seis meses, a instalação de equipamentos para banhos quentes para a população carcerária. 

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Além disso, durante a pandemia de Covid-19, por exemplo, decisões judiciais que determinavam o fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPIs) a profissionais de saúde foram suspensas em estados como Ceará e São Paulo. No Paraná, 86% das decisões judiciais relacionadas à emergência de saúde foram  suspensas – uma delas proibia o confisco de pertences de pessoas em situação de rua em Curitiba durante a pandemia. Já na Bahia, 61% das suspensões analisadas entre 2013 e 2020 estavam relacionadas à Covid-19. No estado, o Tribunal de Justiça suspendeu decisões que determinavam, por exemplo, o fornecimento de água para comunidades vulneráveis durante a pandemia. Outro exemplo foi o do Tribunal de Justiça do Amazonas, que usou a suspensão de segurança para afetar decisões que obrigavam o estado a fornecer oxigênio medicinal para diversos municípios, como Manacapuru e Nova Olinda do Norte. Isso aconteceu em meio à crise de falta de oxigênio que assolou o estado durante o pico da pandemia em 2021, quando milhares de pessoas morreram devido à falta de recursos médicos.

Segundo o levantamento da plataforma JUSTA, em 70,3% das decisões sobre a pandemia de Covid-19 no estado de São Paulo, foi identificado o mesmo texto – o que sugere uso de “copia e cola” para argumentação das determinações. Um dos principais argumentos utilizados pelos tribunais para conceder suspensões de segurança é o impacto na economia pública. Muitas vezes, o poder público alega que não há previsão orçamentária para implementar as decisões judiciais, o que justificaria a suspensão. “Os mesmos governos que requerem as suspensões de segurança concedidas pelos presidentes dos tribunais muitas vezes no mesmo dia, são também os responsáveis pela abertura de créditos adicionais que garantem repasses de milhões de reais não previstos no orçamento para os tribunais”, diz o relatório. 

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Segundo outro levantamento do JUSTA, em 2022, R$ 2,6 bilhões em créditos adicionais foram distribuídos para as instituições de justiça, sem a aprovação do Legislativo. Nesse período, o estado do Maranhão foi o que mais recebeu créditos, R$ 643 milhões, seguido por São Paulo, que embolsou R$ 569 milhões. Em agosto, uma determinação do Tribunal de Contas da União (TCU) fez com que o governo abrisse  um crédito extraordinário de R$ 1,35 bilhão para o Poder Judiciário, excedendo os limites do arcabouço fiscal e a meta de resultado primário estabelecida para este ano. “O argumento da economia pública não se sustenta quando observamos a forma como os recursos são alocados”, diz Luciana Zaffalon, diretora do JUSTA.

De um caso a outro

Outro ponto abordado pelo estudo foi a prática de extensão dos efeitos das suspensões de segurança. Uma vez que uma decisão de suspensão é concedida, é comum que seus efeitos sejam estendidos para outras decisões similares, sem necessidade de novo julgamento. Isso permite que um único ato de suspensão paralise inúmeras decisões judiciais subsequentes, ampliando o impacto da medida. 

A prática de extensão dos efeitos da suspensão de segurança foi institucionalizada pela Medida Provisória 2.180-35, de 2001, editada durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Essa MP estabelece que “as liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única decisão, podendo o Presidente do Tribunal estender os efeitos da suspensão a liminares supervenientes”.

Segundo o JUSTA, essa prática “inviabiliza a efetividade de várias decisões judiciais de primeira instância”, prejudicando especialmente direitos fundamentais. Um exemplo de como isso pode acontecer também tem como pano de fundo a pandemia. No Pará, uma decisão que determinava a criação de um Plano de Atendimento Emergencial e o translado de povos e comunidades tradicionais das Reservas Extrativistas do Rio Xingu e outras áreas para tratamento médico foi suspensa. Essa suspensão foi estendida para outras comunidades ribeirinhas e populações no sudeste do Pará. 

Em outro exemplo, o presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR) suspendeu sete decisões judiciais que obrigavam o estado a designar agentes penitenciários para assumir a custódia de presos em cadeias públicas, em substituição a delegados de polícia, durante a pandemia. A suspensão foi fundamentada no impacto que a pandemia causaria sobre a administração penitenciária.

O que fazer

O primeiro passo para lidar com os efeitos das suspensões de segurança sobre direitos fundamentais é conhecer, de fato, que decisões são essas, diz Zaffalon. Em muitos estados, como Ceará e Paraná, a maioria dos processos de suspensão de segurança estava em segredo de justiça, impedindo o acesso público aos detalhes das decisões. Luciana Zaffalon explica que “ninguém conhece a suspensão de segurança, muito menos a monitora, o que dificulta a compreensão de seus reais impactos na sociedade”. Para a especialista, esse tema poderia ser monitorado por instâncias como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Além disso, as Defensorias Públicas podem usar a suspensão de segurança “como arma para modificação social, e não manutenção do status quo”, diz Carlos Almeida, defensor no Amazonas. Em 2014, a Defensoria Pública do Amazonas começou a usar a suspensão de segurança, como parte do Estado, para tutelar o interesse público. O leading case envolveu uma comunidade de 370 produtores rurais na zona rural de Manaus que estava sob ameaça de reintegração de posse por parte de uma empresa. De forma inédita, a suspensão de segurança para defender o interesse público sob jurisdição foi considerada legítima.

No entanto, no ano passado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu, no âmbito da EDcl no AgInt na SLS 3.156-AM, que “a Defensoria Pública não possui legitimidade ativa para manejar pedido de Suspensão de Segurança ou Suspensão de Liminar e Sentença, salvo na preservação do interesse público primário quando atua em defesa de prerrogativas institucionais próprias do poder público”. 

Já em agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu por unanimidade que a Defensoria Pública pode ajuizar pedidos de suspensão às presidências dos tribunais quando o interesse público primário e a ordem pública protegerem também os interesses da coletividade vulnerável e os direitos humanos institucionalmente protegidos pelo Estado Defensor. Antes, prevaleciam posições monocráticas de presidentes anteriores do STF que recusaram a proteção coletiva para pessoas vulneráveis por meio da suspensão de segurança. “As Defensorias precisam ter sua posição reconhecida e pacificada pelos tribunais superiores como atores legítimos nessa luta”, diz Zaffalon.

“Também passei pela máquina pública e sei que os recursos sempre vão ser escassos. Como devemos encarar esse conflito entre a necessidade de direitos fundamentais e a reserva do possível?”, questiona Almeida. “Por isso é importante que os postuladores se preocupem também com o “como”, que vão atrás do orçamento público, para fazer pedidos cirúrgicos, com fundamentações que muitas vezes demoram mais, mas que a judicialização da política pública de fato funcione”. 

O empurrão para a mudança nesse panorama também pode vir de fora. Em maio, o JUSTA e o Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo levaram o tema à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, denunciando o uso abusivo da suspensão de segurança pelo judiciário brasileiro. A ação ainda está em processamento, e a partir daí outros atores podem entrar como amici curiae. “Precisamos de um mosaico de soluções”, diz Zaffalon. 

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