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O uso da técnica da desconsideração da personalidade jurídica pelo Tribunal de Contas da União (TCU) é assunto regularmente abordado pela doutrina especializada em controle externo (inclusive, já tendo sido tratado nesta coluna).
A questão é polêmica, já que não há previsão legal para o TCU aplicar o instituto — para usá-lo, a Corte de Contas invoca a teoria dos poderes implícitos, que tem sido chancelada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Há outras controvérsias inerentes à desconsideração da personalidade jurídica pelo TCU[1], tais como: (i) existência de um padrão probatório para demonstração da fraude ou da confusão patrimonial (alheio à praxe do controle de contas); (ii) demonstração de que aqueles atingidos pelo instituto tiveram benefício patrimonial pela fraude (providência difícil de ser tomada pelo controle de contas por envolver sujeitos alheios à sua jurisdição); e (iii) observância dos requisitos processuais dispostos no Código de Processo Civil, como a instauração de incidente apartado (esse último ignorado pelo TCU).
Afora dúvidas sobre a compatibilidade do instituto com o controle de contas, emerge da jurisprudência do TCU dúvidas sobre o modo como ele tem sido aplicado.
Em decisão de 27 de março, o TCU decidiu pela possibilidade de aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica para estender o regime jurídico prescricional de pessoa física para pessoa jurídica (Acórdão 516/2024-P).
Na oportunidade, o TCU desconsiderou a personalidade jurídica de pessoas físicas para aplicar à pessoa jurídica o §2º do art. 1º da Lei 9.873/99 – segundo o qual “quando o fato objeto da ação punitiva da Administração também constituir crime, a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal”. A interpretação foi usada para afastar a prescrição quinquenal.
A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica às avessas para estender, para a pessoa jurídica, o regime prescricional aplicável à pessoa física demanda reflexão por parte doutrina e esclarecimentos da parte do tribunal.
Seria necessário invocar a desconsideração da personalidade jurídica para justificar a aplicação do art. 1º, §2º, da Lei nº 9.873/99 a pessoas jurídicas? O CADE, por exemplo, entende que o dispositivo se refere à reprovabilidade do fato, não se dirigindo a um autor que possa cometer o crime[2].
Também se poderia questionar a possibilidade de a desconsideração da personalidade jurídica ser utilizada para fins não patrimoniais. O instituto surgiu para impedir a fraude e abuso de direito por parte da pessoa jurídica e de seus sócios, a fim de permitir ao credor relativizar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, fictícia, quando ela é utilizada como instrumento para a prática de ilícitos.
Importante recordar que o artigo 50 do Código Civil, fundamento legal do instituto, aponta a necessidade de que haja desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Ademais, segundo o dispositivo, a desconsideração da personalidade jurídica opera efeitos eminentemente patrimoniais, a fim de implicar não a pessoa física de administrador ou de sócio, mas sim os seus bens, para possibilitar a satisfação de uma obrigação. Não é o caso da extensão de regime prescricional.
Vê-se no julgamento recente, portanto, uma possível aplicação equivocada da desconsideração da personalidade jurídica para se evitar a incidência da prescrição, o que vai ao encontro das controvérsias já existentes sobre o uso dessa técnica pelo tribunal.
[1] Giuseppe Giamundo Neto e Fernada Leoni trazem bom levantamento sobre o assunto em https://www.conjur.com.br/2024-abr-03/aspectos-controversos-sobre-a-desconsideracao-da-personalidade-juridica-pelo-tcu/
[2] Como exemplo, acórdãos nos processos PA nº 08012.004330/2002-43 (Rel. Conselheiro Márcio de Oliveira Júnior), PA nº 08012.008960/2010-71 (Rel. Conselheiro Gilvandro Araújo) e PA nº 08012.001029/2007-66 (Conselheiro João Paulo de Resende).