No mundo atual, a percepção das dificuldades não pode mais se dissociar do remanejamento dos quadros funcionais.
Pensando mais a longo prazo, a percepção das dificuldades possibilita uma melhor visão global dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

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Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

Tentativa e erro: como a democracia brasileira quase entrou pelo cano

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Os estudos sobre transições de regimes políticos identificam duas principais formas de ruptura democrática. Historicamente, a mais comum é o golpe de Estado, que pode ser entendido como “esforços organizados para realizar repentina e irregular retirada da autoridade incumbente do Executivo de um governo nacional, ou para substituir a autoridade da maior autoridade de um ou mais ramos do governo”, tal qual definido pelo Coup D’Etat Project.

Foi o que aconteceu no Brasil em 1964 e que se repetiu na América do Sul durante boa parte da segunda metade do século passado no contexto da Guerra Fria.

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Após o período de disputa ideológica entre Estados Unidos e União Soviética, uma nova maneira de ruptura democrática entrou na moda. Fora e dentro da academia, hoje se fala que a democracia morre não com tanques nas ruas, mas a partir da ação de líderes eleitos que usam meios legais e por dentro das instituições democráticas.

É o que os especialistas chamam de retrocesso democrático (democratic backsliding): a transição da democracia para um regime autoritário ocorre de forma silenciosa, sem a necessidade de ruptura institucional.

Nessa discussão, um regime autoritário é caracterizado por restringir o espaço civil, como através da sufocação da mídia livre e aprovação de leis que ferem direitos de minorias, mas também por subverter instituições de freios e contrapesos (como cooptação de cortes judiciais) e, fundamentalmente, enviesar eleições a favor do incumbente, seja através de reformas no arcabouço legal eleitoral, cooptação das autoridades eleitorais ou por fraudes mais descaradas.

Em um processo de retrocesso democrático, os pilares do sistema político são gradativamente minados até chegar o momento em que a transferência do poder via eleições é inviabilizada. Venezuela e Hungria são exemplos desse tipo de transição. 

Felizmente, a Ciência Política já sabe medir retrocessos democráticos. Uma forma de aferir a qualidade do sistema político, e consequentemente observar a variação nessa qualidade, é a partir do Índice de Democracia Liberal do V-Dem, instituto sediado na Suécia que se destaca por mensurar e disponibilizar publicamente dados relevantes ao estudo da democracia no mundo. Uma vantagem desses indicadores é identificar processos de retrocesso que tendem para uma ruptura antes mesmo que a quebra ocorra, soando o alerta para os defensores da democracia. 

Vejamos a quantidade de rupturas democráticas que foram realizadas com golpes de Estado entre 1945 e 2023, segundo dados do Coup D’Etat Project.

A linha tracejada vermelha indica o final da Guerra Fria. Note como a frequência de golpes cai consideravelmente nas últimas décadas. Utilizando a categorização de regimes políticos do V-Dem, é possível identificar todas as transições de democracias para autocracias entre 1945 e 2021.

A Figura 2 apresenta a quantidade dessas transições, por ano, excluindo-se os casos de golpe de Estado, servindo assim como uma visualização de “rupturas democráticas silenciosas”. Observe como após a Guerra Fria (novamente a linha tracejada vermelha) essa maneira de transição de regime se tornou mais frequente. 

Recentemente a democracia brasileira correu os dois tipos de risco: primeiro de se autocratizar silenciosamente, e segundo, de sofrer um golpe de Estado. Se a democracia pode ser compreendida como um equilíbrio autoimposto entre os atores políticos relevantes, entre 2019 e 2022, atores políticos importantes com pouco apreço pela democracia tentaram diferentes estratégias para minar o sistema por dentro.

No nível mais perceptível, o então presidente Jair Bolsonaro e outros membros do governo atacaram as liberdades civis e individuais, em franco combate com a imprensa livre, universidades e sociedade civil organizada. Instituições que deveriam ser independentes sofreram tentativas de cooptação (pergunte ao ex-ministro Sergio Moro o que estava acontecendo na Polícia Federal ou quantas investigações contra Bolsonaro o procurador-geral da República arquivou). Quando considerados em conjunto, esses elementos devem estar negativamente associados ao Índice de Democracia Liberal do V-Dem. Vejamos os dados.  

As linhas vermelhas tracejadas delimitam a vigência do governo Bolsonaro (2019-2022). As evidências não deixam margem para dúvidas: o sistema político sofreu uma tentativa de implosão por dentro. Mesmo adotando táticas clientelistas com ampla utilização de recursos públicos e atacando a integridade do processo eleitoral sem provas, Bolsonaro fracassa, o que o impede de prosseguir com seu projeto de ruptura silenciosa da democracia brasileira.

Eis que a Polícia Federal revela que o ex-presidente, membros de seu governo e oficiais militares da ativa e da reserva arquitetaram um golpe de Estado démodé com o objetivo de evitar a transição de governo. Segundo informações do inquérito, a conspiração não foi para frente por razões alheias às vontades dos participantes.

As instituições democráticas brasileiras demonstraram resiliência durante o mandato de Bolsonaro apesar das recorrentes tentativas de enfraquecimento. Ressaltamos aqui, em particular, a independência da Suprema Corte e da autoridade eleitoral. Um corpo burocrático profissional, em diversos níveis e instituições, também foi crucial para impedir que o retrocesso fosse maior durante o período de estresse institucional. Locke, Montesquieu e Weber devem estar felizes. 

Por muito pouco, nossa frágil democracia não se transformou em um Miliquistão em pleno século 21. Exemplos de países vizinhos, como Argentina, Chile e Uruguai, demonstram que, quando não se sabe brincar, o melhor é excluir essa gente do jogo democrático. E, para isso, precisamos garantir instituições fortes e  independentes, em que o poder político seja dividido com o objetivo de evitar o abuso do poder. 

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