Terrorismo, golpismo e a luta institucional contra ‘revolução’ da extrema direita

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Proponho o seguinte exercício, caro leitor: voltemos aos longínquos anos de estabilidade político-institucional do Brasil pré-2013, quando, bem ou mal, o país assistia à sua particular ilusão de fim da história.

De um lado, liderando o governo havia 10 anos, havia uma centro-esquerda petista, apoiada sobretudo por eleitores de origem pobre. Na oposição, prevalecia uma centro-direita tucana capitaneada por elites tradicionais. PT e PSDB pareciam destinados a alternar o comando do Executivo entre si – oriundos da luta contra a ditadura, portanto, estavam comprometidos com a ordem constitucional inaugurada em 1988. A constituição cidadã e o respeito aos resultados eleitorais, vale dizer, haviam isolado do debate público os saudosistas do arbítrio.

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No entanto, os ressentidos voltariam à ribalta em breve, fomentados pela frustração econômica que se seguiu à bonança lulista, alimentada, ainda, por um ressentimento com os “bons modos” do debate público que havia isolado os extremistas, em prol de um acordo político que foi, desde sempre, também um acordo discursivo – como bem ilustrado por Idelber Avelar no livro Eles em nós.

Pois fica a pergunta: como reagiriam nossos analistas políticos se pudessem viajar no tempo e antecipar os horrores do golpismo liderado no final de 2022 pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL), associado ao terrorismo extremista de direita de Tiü França, que se explodiu diante do Supremo Tribunal Federal (STF)? Teriam eles sido capazes de reportar ao Brasil da década passada que estamos hoje sujeitos a uma revolução armada de extrema direita?

Mais do que matar Lula, Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes, Bolsonaro et caterva ainda ambicionam revolucionar o Brasil. Não obstante a aparente contradição que une as palavras “revolução” — desde sempre associada ao campo da esquerda marxista — e “direita” — geralmente vinculada ao conservadorismo e, portanto, à busca por estabilidade –, não podemos escapar da realidade, caro leitor. Aos olhos do radicalismo bolsonarista, a democracia balizada pela Constituição em vigor perdeu legitimidade e cabe empregar a força física para que ela seja aniquilada e enterrada com seus apoiadores e guardiões.

Nesse sentido, é importante prestarmos atenção à fala do ministro Moraes, no último dia 14 de novembro, em resposta ao atentado terrorista cometido em Brasília por França. “A impunidade daqueles que atentaram contra a democracia gera eventos como ontem [13]”, disse o ministro do STF, chamando atenção para os perigos do tal “PL da Anistia” que tramita no Congresso.

Espera-se que, após a trama golpista-assassina empreendida entre o fim de 2022 e o começo de 2023 e cabalmente desvendada pela Polícia Federal, essa proposta não mais seduza setores da direita democrática, centrista e até mesmo esquerdistas que ainda acreditam em diálogo com o bolsonarismo.

Em seguida, como se quisesse dar uma dica do que seria revelado à opinião pública na semana seguinte, Moraes concluiu: “Essa impunidade vai gerar mais tentativas de uma ‘revolução’, como disse a pessoa que se suicidou ontem”. Peço ênfase a esta frase, que me parece ter passado ao largo do noticiário.

Talvez seja o caso de afirmar que tais palavras marcarão a nossa historiografia como a primeira vez que, desde o fim da ditadura civil-militar encerrada em 1985, uma autoridade de alto escalão denuncia uma “revolução” em curso no país, descrevendo-a, em alto e bom som, como a grande ameaça contra a qual devem se insurgir os defensores da democracia.

O uso de tal gramática, vale dizer, inquieta devido ao seu peso histórico. Há aproximadamente quatro décadas, saímos de uma ditadura na qual a convocação para a defesa do regime contra os “revolucionários” de esquerda era tática comum para legitimar o uso da força contra qualquer ameaça à sua ordem, que era social e econômica, mas também cultural e moral, de modo que os potenciais inimigos se fabricavam de forma industrial. Basta lembrar que até hoje muitos veem em Lula e no PT — e até mesmo no quase finado PSDB — uma suposta ameaça comunista.

Nesse sentido, a declaração de Moraes decreta, no Brasil, o fim da velha associação da direita ao campo da ordem e das elites econômicas, enquanto a esquerda representaria o campo da transformação social de bases populares. Como demonstra o retorno de Donald Trump ao poder nos Estados Unidos, a busca por uma revolução de extrema direita não é fenômeno exclusivamente brasileiro: a estética da revolução, aquela que mobiliza os excluídos de determinado regime representativo contra as suas instituições – políticas, econômicas e culturais –, agora pertence a reacionários travestidos de conservadores.

Estes, que acreditam em mudanças incrementais, vindas da sociedade, foram engolidos pelos radicais de direita. É esta a nova configuração social que permeia as democracias ainda liberais, inclusive na Europa e em outras partes do mundo em desenvolvimento além do Brasil. Pensem em Javier Milei na Argentina e Narendra Modi na Índia: cada um a seu modo subverte os primados liberais de suas respectivas nações contra elites supostamente corruptas.

Em sua teoria dos atos de fala, o linguista John Austin demonstrou como as palavras, para além de descrever as coisas, têm uma particular capacidade de fazer as coisas. Se aplicarmos a regra ao funcionamento da política, em seu caráter formal e simbólico, é o caso de dizer que, mais do que propriamente nos alertar do perigo, Moraes esboçou, em sua fala, a gramática institucional de um novo tempo – pois, quando as instituições falam, elas também fabricam o próprio chão em que pisamos.

Diferentemente do nosso ofício nesta coluna, Moraes não analisa, mas cria o vocabulário e, portanto, o próprio jogo de que fazemos parte desde que a extrema direita ascendeu como força popular: aquele que opõe revolucionários de extrema direita e defensores da ordem. Ambos os lados disputam a primazia de serem classificados como os verdadeiros democratas, seja no Brasil, nos Estados Unidos ou em qualquer outro país atormentado pelo fantasma do radicalismo reacionário.

Se alguns dirão que, ao pintar uma “revolução” de direita, Moraes acaba dando as armas ao inimigo, é necessário lembrar que as armas estão voltadas contra a democracia pelo menos desde que Bolsonaro chegou ao poder e manteve-se fiel a práticas golpistas. Certamente, não será o silêncio institucional a fazer estes “revolucionários” voltarem para a casinha.

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