TJSP se divide sobre determinar cobertura de Ozempic por planos de saúde

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Indicado para o tratamento domiciliar de diabetes tipo 2 e popular entre quem busca emagrecer, o Ozempic se tornou alvo de diversas ações judiciais que discutem a obrigatoriedade de operadoras de fornecer o medicamento para beneficiários de planos de saúde. Apesar da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) contrária à cobertura obrigatória de remédios de uso domiciliar, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) vem se dividindo sobre o tema. De 11 decisões analisadas pelo JOTA, proferidas de janeiro de 2023 a junho de 2024, seis delas foram favoráveis ao consideraram os relatórios médicos e a necessidade do medicamento para o tratamento de pacientes em casos graves.

Já outras cinco foram contrárias ao fornecimento do Ozempic e atenderam às operadoras, sob o entendimento de que legislação veda a obrigatoriedade da cobertura do remédio de uso domiciliar, salvo em tratamento com antineoplásicos, conforme determina no artigo 10 da Lei 9.656/98. Além disso, de acordo com o STJ, “é lícita a exclusão, na Saúde Suplementar, do fornecimento de medicamentos para tratamento domiciliar, isto é, aqueles prescritos pelo médico assistente para administração em ambiente externo ao de unidade de saúde, salvo os antineoplásicos orais (e correlacionados), a medicação assistida (home care) e os incluídos no Rol da ANS para esse fim; os medicamentos receitados por médicos para uso doméstico e adquiridos comumente em farmácias não estão, em regra, cobertos pelos planos de saúde”. (REsp1.692.938/SP).

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Apesar dessa — apertada— maioria de decisões favoráveis a beneficiários, o TJSP vem proferindo outras decisões desde junho, de modo que não é possível apontar para uma clara tendência do tribunal.

O Ozempic é mais conhecido pelo uso off-label para emagrecimento. O princípio ativo do medicamento, a semaglutida, estimula a produção de insulina e reduz a secreção do glucagon, auxiliando pacientes diabéticos a sintetizar o açúcar sem a necessidade do uso de insulina sintética. O medicamento da Novo Nordisk está registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) desde 2018 e, mediante prescrição médica, tem o custo médio de R$ 1 mil nas farmácias.

Desde 2023, a Anvisa também passou a indicar o medicamento como “um adjuvante a uma dieta hipocalórica e exercício físico aumentado para controle de peso, incluindo perda e manutenção de peso, em adultos com Índice de Massa Corporal (IMC) inicial de: • ≥ 30 kg/m2 (obesidade), ou • ≥ 27 kg/m2 a < 30 kg/m2 (sobrepeso) na presença de pelo menos uma comorbidade relacionada ao peso, por exemplo, disglicemia (pré-diabetes ou diabetes mellitus tipo 2), hipertensão, dislipidemia, apneia obstrutiva do sono ou doença cardiovascular”.

Esse entendimento de que o medicamento de fato pode ser usado para emagrecimento, desde que haja outras comorbidades relacionadas ao peso, como a própria diabetes, ajudou a embasar os pedidos pelo fornecimento obrigatório do remédio pelas operadoras.

As operadoras vêm negando a cobertura do medicamento sob a alegação de que, além do uso domiciliar, o fármaco não está previsto no rol de medicamentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). No entanto, o TJSP tem considerado a necessidade do medicamento para o tratamento de pacientes em casos graves. Tanto em decisões liminares quanto em acórdãos de mérito, os magistrados avaliam que as restrições quanto ao local do tratamento não podem impedir a cobertura da tecnologia para os beneficiários que possuem indicação médica.

Decisões pró-beneficiários

Em uma das decisões levantadas pelo JOTA, a 1ª Câmara de Direito Privado negou por unanimidade provimento ao recurso movido pela Santa Helena Assistência Médica. No caso, a operadora fundamentou o pedido no artigo 10 da Lei 9.656/98, que prevê a recusa de medicamentos de uso domiciliar pelos planos de saúde, salvo em tratamento com antineoplásicos.

Ao manter a concessão do medicamento — neste caso, para uso on-label —, o relator da ação, desembargador Claudio Godoy, destacou a gravidade do quadro da beneficiária, diagnosticada com obesidade grau 3, diabetes mellitus II e dificuldades de locomoção. Para o magistrado, a negativa soa abusiva ao restringir a cobertura da medicação caso a paciente não esteja internada.

Em seu voto, ele afirmou que a cobertura do remédio é válida porque a ausência de tratamento poderia provocar ou acelerar a necessidade de internação. “Sucede que restrições sobre o local de atendimento, em princípio, não podem se aplicar quando a infusão da droga indicada seja, em si, o tratamento da paciente”, explicou.

O relator entendeu que a negativa da operadora fere os direitos da beneficiária, uma vez que restringe a cobertura à internação. “Ainda que não se esteja a afirmar que a lei prevê a cobertura de todo e qualquer medicamento prescrito ao beneficiário de contrato de saúde, assim em qualquer hipótese, isto se dá em situações em que, conforme a doença e seu estágio evolutivo, negar a cobertura da droga em domicílio signifique provocar ou acelerar a necessidade de internação, quando então, e de qualquer modo, será devida a cobertura do medicamento, mas a dano da paciente, que sofre os efeitos deletérios da doença até que necessite de internação”, considerou.

Em relação à ausência do Ozempic no rol de cobertura da ANS, o relator considerou que a não previsão do medicamento não exclui a possibilidade de concessão pela operadora. (apelação cível n. 1017708-33.2023.8.26.0554)

Em outra decisão favorável à cobertura pelo plano, a 10ª Câmara de Direito Privado do TJSP manteve sentença judicial contra a Vision Med. Na ação, o beneficiário possuía obesidade grau III e foi receitado o tratamento com uso off-label do Ozempic.

Em seu voto, o relator do caso, desembargador Márcio Boscaro, também destacou a complexidade do quadro clínico do paciente, que desenvolveu múltiplas enfermidades. Ao citar o relatório médico, o magistrado considerou que o tratamento com Ozempic se mostrou imprescindível para a saúde do beneficiário.

Além disso, o relator ressaltou que a operadora não apresentou provas contrárias que mostrassem a existência de outro tratamento ou medicamento disponível no contrato. “No presente caso, não há o que infirme esse entendimento, pois, em se tratando de quadro complexo de saúde, para o qual há expressa recomendação médica de tratamento, é evidente que a limitação ou negativa da cobertura possui o condão de causar ao apelado danos irreversíveis”, considerou. (apelação n. 1029741-65.2023.8.26.0001)

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Nesse mesmo sentido, uma decisão da 2ª Câmara de Direito Privado negou o recurso da Unimed em caso envolvendo dois pacientes com obesidade, sendo que um deles possui pré-diabetes. “Em ambos os casos se vê que os pacientes lutam contra aobesidade e/ou sobrepeso há tempos, sendo certo que ambos já passaram por cirurgias bariátricas e, ainda assim, apresentam Índices de Massa Corpórea (IMC) preocupantes, daí o motivo pelo qual o médico que os acompanha ter entendido pela necessidade do uso da medicação”, afirmou o relator do caso, desembargador José Carlos Ferreira Alves.

“Em relação a Eliseu [um dos pacientes], o médico endocrinologista enfatizou que ‘mantém refratariedade à perda de peso apenas com mudança de estilos de vida’, ou seja, não responde ao tratamento (refratariedade) com outros métodos mais orgânicos e tem contraindicação ao uso de sibutramina”, explicou. Neste caso, o uso poderia ser descrito como off-label.

“Já em relação a Maria das Graças, além de apresentar IMC preocupante, indicando sobrepeso, mesmo após cirurgia bariátrica, apresenta outra comorbidade, a pré-diabetes, sendo certo que o medicamento em questão, o mesmo indicado para ambos os pacientes, cada qual com dose específica para seu peso e altura, tem efeito de combater a obesidade e/ou sobrepeso, além de ser utilizado para o tratamento do quadro de pré-diabetes”, prosseguiu. No caso desta paciente, o uso o Ozempic poderia ser descrito como on-label.

“Não obstante faltem-me conhecimentos técnicos na área médica, não me parece que o medicamento Ozempic® relativo ao tratamento prescrito aos autores se subsuma à hipótese de negativa de cobertura por parte da ré. O que me cumpre analisar, por conseguinte, é a indicação do tratamento para o caso. E isso está suficientemente demonstrado conforme relatado nos itens anteriores, não sendo possível à seguradora escolher o melhor tratamento destinado aos pacientes, pois, sendo julgado necessário pelo médico, deve ser coberto, independentemente de estar previsto ou não no contrato”, prosseguiu o desembargador em sua argumentação.

“Assim, é cediço que o seguro deve abarcar tratamentos mais modernos à medida que vão surgindo, sob pena de sancionar o cliente que contrata um plano de saúde e cumpre pontualmente com todas as obrigações de pagamento, mas se vê desprotegido em um momento futuro”, acrescentou.

Por fim, o desembargador rebateu o argumento da operadora de que não há obrigação de custear medicamentos em desacordo com as diretrizes do Rol da ANS. “Tampouco é de se acolher, posto que o avanço científico é sempre muito mais dinâmico do que o direito. Nesse diapasão, não se pode negar o direito do segurado a uma vida com dignidade, quando houver um tratamento idôneo a aliviar seu sofrimento, restituindo sua qualidade de vida e estendendo
sua sobrevida. É exatamente o caso dos autos: se há cobertura para doença (obesidade e pré-diabetes), não há razão para excluir-se os tratamentos prescritos, sob pena de inviabilizar-se a manutenção da saúde”, explicou.

“Aliás, este TJSP possui entendimento sumulado a respeito, nos termos da Súmula 102: ‘Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS’”, finalizou. (apelação cível n. 010579-36.2023.8.26.0114)

Decisões pró-operadoras

Entre as decisões contrárias à cobertura do Ozempic, há um acórdão da 2ª Câmara de Direito Privado que acolheu o recurso da Bradesco Saúde para negar a concessão do remédio. No caso, a relatora do recurso, juíza auxiliar Hertha Helena De Oliveira, afirmou que a beneficiária do plano, que alega ter obesidade grau II, não conseguiu comprovar a existência de comorbidade que justificasse o fornecimento do remédio.

Em seu voto, ela explica que o relatório médico apresentado foi sucinto, sem qualquer explicação a respeito da prescrição ou existência de comorbidades. “Pondero que não foram muitos os casos apreciados por esta Colenda Segunda Câmara a respeito do medicamento Ozempic, mas aqueles nos quais houve determinação à seguradora para fornecimento, envolvem pacientes com comorbidades graves decorrentes (e além) da obesidade grau II, tais como esteatose hepática, insucesso de cirurgia bariátrica, transtorno obsessivo compulsivo de alimentação, diabetes e pânico”, afirmou. (apelação cível n. 1016632-75.2023.8.26.0003)

Em outra decisão, a 10ª Câmara de Direito Privado negou a cobertura do Ozempic com base no artigo 10 da Lei 9.656/98. A relatora do caso, desembargadora Ângela Moreno Pacheco de Rezende Lopes, considerou que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entende que os medicamentos de uso domiciliar com autoadministração pelo paciente não estão previstos na cobertura obrigatória pelo plano.

“De acordo com perícia médica realizada na origem, o remédio sub judice é administrado em ambiente domiciliar por injeções semanais (fls. 501) e inexiste limitação para aquisição direta pelo próprio paciente, de modo que é válida a recusa do fornecimento”, entendeu. (apelação n. 1029125-61.2021.8.26.0001)

O que dizem as partes

Para o advogado Caio Henrique Fernandes, sócio do Vilhena Silva Advogados e especialista na defesa dos beneficiários de planos de saúde, é necessário ressaltar que o entendimento majoritário do STJ não reconhece a obrigatoriedade da cobertura de medicamentos de uso domiciliar.

Ele explica que, mesmo com a previsão legal para a concessão de medicamentos fora do rol da ANS (Lei 14.454/2022), os pedidos de cobertura devem estar amparados por relatórios médicos que atestem a gravidade da doença e tragam estudos sobre o tratamento com o medicamento. “Diante da gravidade da doença, é necessário interpretar a Lei 9.656/98 de forma extensiva e análoga aos casos antineoplásicos. O advogado do consumidor deve apresentar essa interpretação mais abrangente, atestando a gravidade da doença e levando estudos sobre o tratamento com o medicamento”, afirmou.

O advogado Lucas Miglioli, do M3BS Advogados, ressalta o risco de coberturas não planejadas ao sistema de saúde suplementar. Segundo Miglioli, é necessário que o Poder Judiciário considere o impacto do aumento dos custos assistenciais no equilíbrio financeiro dos planos de saúde.

“O preço do plano de saúde é estabelecido com cálculos atuariais, que consideram o comportamento de saúde de uma determinada população versus o risco a que a operadora se expõe. Ou seja, a operadora precisa ter recursos suficientes para suplantar a demanda do comportamento da sua carteira. Quando se começa a julgar tratamentos que não estão computados no cálculo, isso cria um impacto financeiro muito grande”, sustentou.

Os números das ações do TJSP com decisões pró-beneficiário analisadas para esta reportagem são: 1017708-33.2023.8.26.0554; 1010579-36.2023.8.26.0114; 1029741-65.2023.8.26.0001; 1008130-35.2023.8.26.0008; 1021901-14.2023.8.26.0224; 1000750-09.2023.8.26.0477.

Os números das ações do TJSP com decisões pró-operadoras são:
1016632-75.2023.8.26.0003; 1029125-61.2021.8.26.0001; 1002552-42.2022.8.26.0068; 1026848-62.2021.8.26.0554; 1059725-25.2022.8.26.0100.

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