Transporte por aplicativo se soma a modais coletivos e colabora com direito à mobilidade

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No próximo dia 9 de dezembro, às 9h, o Supremo Tribunal Federal (STF) realiza audiência pública para debater questões importantes envolvendo os motoristas por aplicativo e as plataformas digitais. A convocação feita pelo relator do Recurso Extraordinário (RE) 1.446.336, ministro Edson Fachin, é mais uma oportunidade para esclarecer sobre as mudanças decorrentes do uso dessa nova tecnologia.

A reunião de setores da sociedade e autoridades públicas se faz necessária porque o modelo de transporte individual oferecido por meio de plataformas digitais gerou reflexos no mercado, nas relações de trabalho e, também, nas discussões sobre o direito à mobilidade urbana eficiente previsto pela Constituição (artigo 144, § 10, I). 

Essa alternativa se tornou popular ao facilitar a locomoção, sobretudo nos espaços urbanos, com tempo de viagem reduzido e de forma acessível. No dia a dia da mobilidade, ele se tornou complementar ao serviço público – um trajeto iniciado de metrô pode ser finalizado com uma corrida curta no transporte por aplicativo para chegar ao destino final, por exemplo. 

Especialistas ouvidos pelo JOTA ressaltam os efeitos do fenômeno, recente no tempo histórico, mas com caminhada suficiente para análises de repercussão no dia a dia das cidades. Dentro de um sistema de mobilidade de qualidade, é necessária a integração entre diferentes modais – e o transporte por aplicativo se tornou um dos elos dessa cadeia, complementando a malha nas cidades brasileiras.

Números do mercado 

As viagens por aplicativos caíram no gosto popular nas metrópoles e cidades médias do Brasil. Os motivos para esse comportamento são diversos: desde a comodidade, por passageiros que abandonaram o veículo particular e adotaram a opção, até para completar a lacuna desatendida pelo transporte coletivo. 

Para se ter ideia, de acordo com dados publicados pela Uber, 125 milhões de brasileiros já utilizaram o aplicativo ao menos uma vez (aproximadamente 80% da população adulta). 

Atualmente, grande parte desse uso, como aponta a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), é em deslocamentos de primeira e última milha – isto é, início e fim das locomoções – com o objetivo de conexão com o transporte público. Dados das plataformas apontam que grande parte das corridas de aplicativos são para estações de ônibus ou de metrô, podendo ultrapassar até metade das viagens dependendo da empresa.

Pesquisa CNT de Mobilidade da População Urbana 2024, produzida pela Confederação Nacional de Transportes (CNT), mostrou que 49% dos entrevistados responderam que o motivo para o uso dos serviços oferecidos por aplicativos é a maior rapidez da viagem. 

Na sequência, 43,2% apontam para a flexibilidade de rotas e horários, 43% mencionaram maior conforto, 36% a facilidade de acesso, 23,2% o menor preço, 20,5% a pontualidade, 18,4% a maior segurança, 16,9% a facilidade de pagamento, dentre outros. A pesquisa focou nos municípios com população acima de 100 mil habitantes, e cada respondente pôde selecionar mais de uma opção. 

Apesar das vantagens dessa opção, o transporte coletivo ainda se faz essencial. Entre os respondentes que usam o transporte público, 32,1% disseram que o fazem pelo menor custo em relação a outras modalidades, por exemplo. Isso é especialmente verdadeiro quando se tratam de longas distâncias, em que o transporte sobre trilhos é um favorito. 

Esse movimento também foi possível por conta da abertura do mercado do transporte individual de passageiros – que antes se concentrava nos táxis – assegurada pelo STF no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 449. 

Ao garantir o exercício dessa atividade, a Corte assinalou que a entrada de novos competidores estava resguardada pela Constituição, em benefício dos valores por ela promovidos (livre concorrência, liberdade profissional, defesa do consumidor). 

Efeitos da mobilidade 

Outra recente pesquisa, da Confederação Nacional da Indústria (CNI), realizada em 2023 em todas as unidades federativas, mostra que o tempo de locomoção tem impacto na produtividade no trabalho para 51% dos entrevistados de municípios com mais de 250 mil habitantes. Esse é mais um motivo que reforça a necessidade de uma mobilidade eficiente. 

Ciro Biderman, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP), avalia que as viagens por aplicativos também se tornaram mais comuns nos últimos anos justamente pela baixa entrega do sistema público – que, frequentemente, não é capaz de atender plenamente todas as regiões.

Se você não tem um carro, pode chamar um motorista que vai até a tua casa para se movimentar com tranquilidade. Nesse sentido, o aplicativo aumenta as possibilidades de locomoção e o direito à cidade”, diz o especialista, diretor do FGV Cidades.

Além disso, Biderman afirma que é relevante olhar para os efeitos da pandemia da Covid-19 sobre esse cenário: “a demanda hoje em dia por transporte público é pelo menos 20% abaixo do que era antes da pandemia na mesma época”. Isso se deve ao aumento dos modelos de trabalho à distância e híbridos, que não exigem deslocamentos diários. 

Para melhorar os sistemas de transporte, mais do que pensar nas modalidades como concorrentes, o professor defende a integração entre elas – inclusive entre os públicos e os privados. 

Nessa linha, uma das propostas da equipe de pesquisadores da FGV Cidades é o chamado “Account Based Ticketing” (ou bilhetagem baseada em contas), que permite que o usuário tenha dados em nuvem acessados por meio de diferentes canais, como cartão de débito, crédito, celulares, pulseiras e QR codes. Assim, seria possível ir via metrô até determinada estação e então alugar uma bicicleta ou chamar uma corrida intermediada por aplicativo usando um único meio de pagamento. 

“O primeiro estudo que eu fiz foi promissor, e conceder desconto para os usuários que fazem a integração geram maior impacto. Alguns municípios têm considerado a hipótese deste projeto”, conta, relatando que tem dialogado com cidades de médio e grande porte em São Paulo.

Direito social

Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicado em outubro de 2023, avaliou como a mobilidade via transporte por aplicativos pode influenciar o acesso a oportunidades de trabalho. Foram usados dados agregados de 152 milhões de viagens feitas na cidade do Rio de Janeiro em 2019, fornecidos pela Uber. 

Do ponto de vista de política pública, as informações apontam a possibilidade de “grandes ganhos de acessibilidade” por meio da promoção da integração entre o transporte público coletivo e alguma alternativa de serviço de transporte sob demanda com roteirização dinâmica (quando a rota planejada pode ter seu trajeto mudado durante o percurso da viagem).

Para viagens de até 30 minutos de duração, o uso dos aplicativos como estratégia integrada com o transporte coletivo, o recurso de primeira milha, pode levar a ganhos significativos de acessibilidade ao emprego, segundo a pesquisa

O artigo 6° da Constituição Federal elenca o transporte como um direito social. Fernando Borges de Moraes é advogado e vice-presidente da Comissão Especial de Transporte e Mobilidade Urbana do Conselho Federal da OAB. No entendimento dele, os aplicativos entram nesse debate em parte pelas deficiências históricas do sistemas de transporte urbano, notadamente das capitais. 

Para ele, o não atendimento total da população é responsabilidade das empresas prestadoras, mas principalmente do poder público que deixa de fazer obras de infraestrutura necessárias para viabilizar uma mobilidade urbana eficiente. 

“Com isso, a tecnologia permitiu um acesso maior às pessoas ao transporte de valor intermediário entre táxi e ônibus, que compensa para uma faixa da população que estava desassistida em termos de eficiência do transporte. Ou seja, o passageiro não está preocupado apenas com o preço. Ele também precisa de pontualidade e regularidade”, avalia.

A advogada Clarice Teobaldo, especialista em Direito de trânsito e mobilidade, analisa que os aplicativos ganham força por serem facilitadores, “como faz a Uber, a 99, mas também os de outros tipos de transporte mais alternativos, como as bicicletas.” 

“O fenômeno tem sido benéfico tanto para as pessoas que antes não tinham condições financeiras para pegar um táxi, por exemplo, quanto também tem gerado fonte de renda”, comenta. Segundo dados da Uber, 5 milhões de pessoas já usaram o aplicativo como motoristas ou entregadores. 

Menos acidentes e um trânsito mais eficiente

Há, ainda, outros dados que merecem ser considerados. A chegada da Uber no Brasil levou a uma redução de 10% no número de mortes e de 17% nas internações por acidentes de trânsito nas cidades em que passou a operar. 

O estudo foi publicado por pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) no Journal of Urban Economics e demonstrou, ainda, que a intensidade da diminuição dessas taxas aumentou consistentemente com a popularidade crescente do serviço.

Parte da explicação pode ser as mudanças comportamentais permitidas por essa opção de transporte. De acordo com pesquisa Datafolha, 68% dos brasileiros que consomem álcool dizem ter deixado de dirigir após beber e passaram a usar aplicativos de mobilidade nessas ocasiões; e 83% consideram que contribuíram para a diminuição de mortes no trânsito.

Por isso, essa pode ser uma ferramenta para reduzir os acidentes de trânsito. Isso também é relevante na medida em que o Brasil não está (com raras exceções de algumas cidades) conseguindo cumprir as metas de redução de acidentes de trânsito pactuadas com a ONU. Além do sofrimento das vítimas ou dos familiares, toda a sociedade paga caro por isso: o Ipea estima em 45 mil o número de mortos anuais e R$ 50 bilhões o custo econômico resultante dos acidentes de trânsito.

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