No mundo atual, a percepção das dificuldades não pode mais se dissociar do remanejamento dos quadros funcionais.
Pensando mais a longo prazo, a percepção das dificuldades possibilita uma melhor visão global dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

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Assim mesmo, a complexidade dos estudos efetuados ainda não demonstrou convincentemente que vai participar na mudança dos métodos utilizados na avaliação de resultados.

Tutela coletiva e combate à violência doméstica contra a mulher – parte 2

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Dando continuidade ao tema tratado nesta coluna em agosto, e partindo das premissas nele estabelecidas – a busca por soluções coletivas e preventivas no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, mediante um olhar conglobante e sistemático a respeito da matéria –, o texto de hoje possui um único objetivo: robustecer o emaranhado de alternativas e possibilidades jurídicas para o tratamento coletivo da matéria.

Conforme dito anteriormente aqui no JOTA, embora o ordenamento jurídico brasileiro possua inúmeras políticas públicas envolvendo o combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, pouco – ou quase nada – se fala na literatura jurídica acerca da fiscalização ou cobrança destas ações ou programas governamentais a partir da tutela coletiva e de seus expedientes judiciais e extrajudiciais (v.g.,TAC, recomendação administrativa, audiências públicas, ação civil pública etc.).

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Diante deste aparente hiato a respeito do assunto, e dada a sua importância na busca pela prevenção e redução dos índices de violência doméstica e familiar contra as mulheres em nosso país, mais alguns caminhos jurídicos serão propostos por este articulista.

1. Aplicação do art. 55 do Estatuto da Pessoa Idosa aos estabelecimentos da rede de proteção da mulher vítima de violência doméstica

Inúmeros são os estabelecimentos públicos ou privados que fazem parte da rede de proteção disponível às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar: entidades de acolhimento (casas-abrigo), centros de referência de atendimento à mulher (CRAMs), serviços de atenção básica, hospitais e postos de saúde, organizações não governamentais (ONGs), entidades do terceiro setor etc.

Nesse contexto, a Lei Maria da Penha, ao tratar das atribuições do Ministério Público, foi categórica ao prever a incumbência de “fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, e adotar, de imediato, as medidas administrativas ou judiciais cabíveis no tocante a quaisquer irregularidades constatadas”. (art. 26, inciso II da Lei 11.340/2006).

Nessa perspectiva, não se discute que, diante da constatação de qualquer irregularidade (v.g., estrutura deficitária em determinada entidade de acolhimento, inobservância do atendimento prioritário ou do direito à acompanhante, estrutura arquitetônica aquém dos padrões de segurança para funcionamento, ou em condições insalubres etc), o representante do parquet poderá se valer dos instrumentos típicos da tutela coletiva para a busca por uma solução, consensuada (termo de ajustamento de conduta, recomendação administrativa) ou não (ação civil pública).

Todavia, para além dos caminhos já conhecidos, este autor gostaria de propor uma terceira – e eficaz via de solução – ao problema: a aplicação das sanções administrativas previstas no art. 55 do Estatuto da Pessoa Idosa.

De acordo com o art. 13 da Lei Maria da Penha: “Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta Lei”. De acordo com o Superior Tribunal de Justiça, a norma materializa o chamado microssistema de proteção dos grupos vulneráveis.1

Admitido o diálogo de fontes entre Estatuto da Pessoa Idosa e Lei Maria da Penha, este autor defende uma interpretação sistemática e complementar entre os arts. 26, inciso II da LMP e 55 do EPI. Isso, porque embora a redação do dispositivo da Lei 11.340/2006 mencione a possibilidade de aplicação imediata de medidas administrativas aos estabelecimentos públicos e privados integrantes da rede de proteção da mulher vítima de violência doméstica, o legislador não disciplinou um rol de sanções a serem aplicadas. Neste caso, constadas irregularidades em estabelecimentos públicos, poderão ser aplicadas as sanções administrativas de: advertência (art. 55, inciso I, alínea ‘a’ do EPI), afastamento provisório de seus dirigentes (art. 55, inciso I, alínea ‘b’ do EPI), afastamento definitivo de seus dirigentes (art. 55, inciso I, alínea ‘c’ do EPI) ou fechamento da unidade/interdição do programa (art. 55, inciso I, alínea ‘d’ do EPI). Por outro lado, nas situações envolvendo irregularidades constatadas pelo Ministério Público em estabelecimentos privados, será possível a aplicação de: advertência (art. 55, inciso II, alínea ‘a’ do EPI), multa (art. 55, inciso II, alínea ‘b’ do EPI), suspensão parcial ou total do repasse de verbas públicas (art. 55, inciso II, alínea ‘c’ do EPI), interdição da unidade/suspensão do programa (art. 55, inciso II, alínea ‘d’ do EPI) e proibição de atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica a bem do interesse público (art. 55, inciso II, alínea ‘e’ do EPI).

Seguindo a mesma linha de raciocínio defendida por este articulista, é a posição de Fausto Rodrigues de Lima: “[q]uanto ao artigo 26, seus incisos I e II beberam na fonte do Estatuto do Idoso, que possui disposições semelhantes (art. 74, VIII e IX), com o fim de exemplificar a atuação ministerial, que não exclui outras previstas na legislação. (…) Dessa forma, é possível aplicar penalidades às entidades que descumprem obrigações no acolhimento de mulheres em situação de violência doméstica, conforme art. 55 do EI.”2

Portanto, a aplicação das penalidades contidas no art. 55 do Estatuto da Pessoa Idosa, se apresenta como uma via alvissareira nos propósitos da fiscalização exercida de forma preventiva pelo Ministério Público perante os órgãos que compõe a rede de proteção da mulher, conferindo maior eficácia à própria atuação coletiva e extrajudicial desempenhada pelo representante do parquet.

2. Fiscalização de entidades de abrigo e acolhimento institucional para mulheres vítimas de violência doméstica

Dentre as políticas públicas previstas expressamente no texto da Lei Maria da Penha, estão as chamadas “casas-abrigo”, destinadas ao acolhimento de mulheres em situação de violência doméstica e seus dependentes (art. 35, inciso II). Embora passados dezoito anos do advento da Lei 111.340/2006, a referida política pública parece caminhar de forma tímida e muito aquém do exigido pela realidade, ao menos quando confrontada a sua baixa capilaridade com os altos índices de violência doméstica e familiar contra a mulher constatados recentemente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.3

Inicialmente, é importante situar o leitor para a diferença conceitual estabelecida pelo Governo Federal nas Diretrizes Nacionais para o Abrigamento de Mulheres em Situação de Risco e de Violência. De acordo com o referido documento, as casas-abrigo prestam o serviço de acolhimento institucional para mulheres em situação de violência doméstica, nos termos da regulamentação realizada pela Resolução CNAS nº 109/20094. Dentre suas características e objetivos estão: a) o caráter de longa duração (de noventa a cento e oitenta dias); b) o sigilo (via de regra) e; c) garantir a integridade física e emocional das mulheres e auxiliar no processo de reorganização da vida das mulheres no resgate de sua autoestima. Por outro lado, as casas de acolhimento prestam um serviço não incorporado à assistência social e possui como traços característicos: a) a curta duração (até quinze dias) e; b) em caráter público (não sigiloso), tudo isso objetivando realizar um diagnóstico rápido da mulher para os encaminhamentos necessário. A fiscalização a ser realizada pelo Ministério Público recai sobre ambas as modalidades.

Voltando ao tema, em âmbito federal, as casas de acolhimento destinadas às mulheres vítimas de violência doméstica ganharam relativa capilaridade mediante a criação das chamadas “Casas da Mulher Brasileira”, local que oferece uma série serviços especializados para a ofendida e seus dependentes. Atualmente, dos 26 (vinte e seis) estados da Federação, apenas 9 (nove) contam com uma instituição funcionando neste modelo. Encontram-se em funcionamento na data de publicação deste texto, as seguintes unidades: Campo Grande/MS, Fortaleza/CE, Curitiba/PR, São Luís/MA, Boa Vista/RR, São Paulo/SP, Salvador/BA, Teresina/PI e Ananindeua/PA. Há ainda uma Casa da Mulher Brasileira em Ceilândia (DF).5

Existem, ainda, casas-abrigo instituídas por ações governamentais de estados, municípios e até mesmo pela sociedade civil organizada. Tratam-se, contudo, de iniciativas isoladas. Em síntese, a política pública de acolhimento institucional de mulheres em situação de violência doméstica e de seus dependentes está ainda muito longe de se tornar universal e com aplicabilidade em todo o território nacional. Este cenário vai, inclusive, de encontro aos parâmetros protetivos da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que reconhece na instituição das casas-abrigo, uma forma de conferir densidade à obrigação dos Estados em proteger as mulheres vítimas de violência.6

A despeito deste cenário – insuficiente – de coisas, deverá o Ministério Público fiscalizar periodicamente os serviços de acolhimento já instituídos, verificando as condições da instituição (infraestrutura, salubridade, segurança, acessibilidade etc.) e a observância de padrões de qualidade condizentes com o princípio da dignidade humana na sua prestação (acomodações, funcionários capacitados dentre outros).

Constatada eventual irregularidade, o representante do parquet deve em um primeiro momento, se valer dos expedientes extraprocessuais para tentar solucionar a questão: procedimento administrativo de acompanhamento de política pública, expedição de recomendação administrativa e/ou celebração de termo de ajustamento de conduta (TAC).

Além disso, será possível, conforme já abordado em tópico anterior, a aplicação das sanções administrativas previstas no art. 55 do Estatuto da Pessoa Idosa. Persistindo a irregularidade, não haverá alternativa ao agente ministerial senão a judicialização da questão.

3. Centros de referência em atendimento à mulher (CRAMs)

Também previstos no rol do art. 35 da Lei Maria da Penha, os centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres em situação de violência doméstica (inciso I) foram instituídos por diversos municípios brasileiros sob o nome de “Centro de Referência em Atendimento à Mulher”, ou de forma abreviada, “CRAMs”.

Em tais unidades, mulheres vítimas de violência doméstica recebem atendimento multidisciplinar, composto por acompanhamento psicológico e social, além orientações para acesso a programas de educação, inserção no mercado de trabalho e para a obtenção de acompanhamento jurídico.

Não obstante a Lei 11.340/2006 faça menção aos CRAMs, a significativa parcela dos municípios brasileiros não conta com referido serviço especializado. Nestes casos, mulheres vítimas de violência doméstica serão atendidas no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), ou ainda, em casos envolvendo municípios habilitados em gestão básica ou plena do SUAS, e com mais de quarenta mil habitantes, no Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS). Ambos os órgãos estão previstos na Lei 8.742/1993 (Lei Orgânica da Assistência Social).

Nos mesmos moldes já desenvolvidos neste texto, incumbirá ao Promotor de Justiça proceder à fiscalização dos CRAMs, CRAS ou CREAS, a fim de verificar se o atendimento prestado à mulher vítima de violência vem sendo prestado nos termos legais, com qualidade, e se a estrutura do órgão atende os padrões técnicos de exigência (comodidade, segurança, higiene etc.).

Constatadas irregularidades, o caminho será o mesmo mencionado em tópico anterior: utilização de instrumentos extrajudiciais, aplicação de sanções administrativas (art. 55 do EPI) e eventual judicialização.

A última edição da coluna deste ano de 2024, embora um pouco mais curta, procurou chamar a atenção para uma perspectiva por vezes esquecida no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher em nosso país: a importância da atuação preventiva mediante a instituição de políticas públicas.

Diante deste cenário, a Lei Maria da Penha incumbiu ao Ministério Público a tarefa de fiscalizar as ações e programas governamentais, razão pela qual, nesta série de dois textos publicados aqui no JOTA, este articulista buscou demonstrar a importância das alternativas existentes para tratamento do tema a partir da tutela coletiva.

Boas festas a todos!


1 Brasil. Superior Tribunal de Justiça. CC 197.661/SC. Rel. Min. Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 09/08/2023.

2 LIMA, Fausto Rodrigues de. Da atuação do Ministério Público. — artigos 25 e 26. In. CAMPOS, Carmén Hein de (org.). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 334.

3 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Atlas da Violência 2023. Disponível em: https://apidspace.forumseguranca.org.br/server/api/core/bitstreams/1045c932-02ad-410b-b01d-46cdace17668/content. Acesso em: 25 nov. 2024.

4 Governo Federal. Diretrizes nacionais para o abrigamento de mulheres em situação de risco e violência. 2011, p. 21. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/copy_of_acervo/outras-referencias/copy2_of_entenda-a-violencia/pdfs/diretrizes-nacionais-para-o-abrigamento-de-mulheres-em-situacao-de-risco-e-de-violencia Acesso em: 25 de nov. 2024.

5 Governo Federal. Ministério das Mulheres. Casa da Mulher Brasileira. Disponível em: https://www.gov.br/mulheres/pt-br/casa-da-mulher-brasileira Acesso em 25 de nov de 2024.

6 Corte IDH. Caso López Soto e outros vs. Venezuela. Sentença de 22 de setembro de 2018, §222

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