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As operações de transporte internacional são, normalmente, sujeitas a formas extracontratuais de limitação da responsabilidade do transportador. Tais disposições, não raro, causam desconfiança e, consequentemente, geram reações voltadas à sua mitigação. É o caso do Anteprojeto de Reforma do Código Civil (ARCC), que em seu Artigo 732-A propõe o seguinte texto:
“As normas e tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros serão aplicados exclusivamente aos danos materiais decorrentes de transporte internacional de pessoas”.
Deste modo, estabelece que (1) transportadoras aéreas (2) não podem se valer, (3) no transporte de passageiros, (4) de normas limitadoras da responsabilidade (5) presentes em acordos internacionais (6) senão para os danos materiais. Seu objetivo, ao que se deduz, é restringir a eficácia das regras internacionais de limitação de responsabilidade (2, 4 e 5) por meio da restrição dos âmbitos subjetivo e objetivo de sua aplicação (1, 3 e 6).
Trata-se, dessarte, de norma proposta para estabelecer exceção, pois limita a efetividade de convenções internacionais, as quais normalmente seriam integralmente aplicáveis. Isso justificaria a busca de uma definição legal bastante estrita, tanto em termos subjetivos (transportadoras aéreas), quanto objetivos (limitação de responsabilidade por danos não patrimoniais em transporte internacional de passageiros).
Em termos sistemáticos, trata-se de regra diretamente relacionada ao Artigo 732 do Código Civil e ao Artigo 178 da Constituição Federal. São normas bastante distintas, em que pese a referência, em ambas, a normas internacionais.
A primeira estabelece uma hierarquização da eficácia do Código Civil, da legislação especial e dos tratados e convenções internacionais. Estabelece, para o campo dos contratos de transporte internos e internacionais, a preponderância das regras do Código em relação a normas especiais e internacionais. Inverte, portanto, o critério de especialidade como instrumento de solução de antinomias. Não se dirige ao Legislador, mas às partes e aos intérpretes dos contratos. Em que pese a identidade da numeração, não parece tema relacionado à norma proposta.
A segunda estabelece a imunização das normas internacionais na ordenação do transporte internacional, as quais devem ser observadas pela lei brasileira, atendida a reciprocidade. É regra endereçada ao Legislador, o qual deve ser fiel aos acordos internacionais, e ao Juiz, cuja aplicação do Direito deve privilegiar as regras constantes dos tratados em detrimento de aparentes e eventuais contradições com os dispositivos legais internos, mesmo que posteriores ou especiais.
Não seria razoável imaginar que o ARCC possa derrogar dispositivo constitucional e, por óbvio, a norma do Artigo 178 da CF conserva a integridade de sua validade e eficácia. Seria um voo demasiado alto para a lei. Seu texto, porém, parece não ter outro destino, pois sugere a impossibilidade de eficácia das normas de tratados internacionais que limitem a responsabilidade por danos não patrimoniais. Trate-se, pois, desse tema.
Se estivessem ausentes os limites constitucionais, a norma proposta implicaria a impossibilidade de gerar efeitos das normas internacionais para além da limitação do quantum indenizatório por danos materiais em contratos de transporte internacional de pessoas, ou seja, aquele em que o passageiro embarca em um país e desembarca em outro, ou, se o ponto de partida e de chegada forem no mesmo país, houver escala em outro país (Convenção de Montreal, Artigo 1 (2)). Os tetos estabelecidos pelas Convenções de Varsóvia e Montreal, portanto, não poderiam ser utilizados nos casos cobertos pela norma proposta com o fim de limitar a indenização.
Há, porém, norma constitucional em contrário. A disposição proposta conflita integralmente com o Artigo 178 da CF e não pode prosperar, já que, em conformidade com o mandamento da Carta Magna, a lei interna não pode revogar, fazendo com que cesse a validade, ou obliterar a aplicabilidade, impedindo a produção de efeitos, dos tratados internacionais de que o Brasil é parte.
Essa posição tem suporte na decisão do RE 636.331/RJ, onde se fixou a Tese 210, com repercussão geral. Lê-se no extrato da ata o texto consolidado:
“Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor”.
Na descrição da tese, no sítio do STF na Internet , entretanto, agrega-se a frase “O presente entendimento não se aplica às hipóteses de danos extrapatrimoniais. ” É uma afirmação importante, pois esclarece que, em razão do RE 636.331/RJ tratar da limitação de responsabilidade por danos materiais decorrentes do extravio de bagagem (CM, Artigo 22), a decisão não abarcou a discussão de danos extrapatrimoniais. Não o fez por não ser objeto do recurso. Deste modo, meramente deixou de abordar o tema, não podendo ser lida como um impedimento à limitação de responsabilidade em matéria de danos extrapatrimoniais. Fosse isso, estaria dito expressamente.
Existe, nessa questão, uma diferenciação importante: o tratamento de matéria consumerista e o da questão dos danos extrapatrimoniais. A primeira está claramente resolvida na Tese 210 do STF: há prevalência da Convenção sobre a Lei em razão do Artigo 178 da CF. Nesse sentido, corrobora a decisão do RE 297.901-5/RN, de relatoria da Ministra Ellen Gracie e reverte o entendimento do RE 351.750/RJ.
A segunda questão, extirpada da repercussão geral a partir da inserção do texto adicional, foi discutida pelo Ministro Barroso em decisão monocrática no RE 351.750/RJ, na qual afirmou que “a norma internacional que rege a matéria deve prevalecer sobre Código de Defesa do Consumidor para eventual condenação de empresa aérea internacional por danos morais e materiais”. Embora com menor assertividade institucional, esse tratamento é consistente com as demais decisões do STF, além de ser perfeitamente sustentável do ponto de vista teórico, bem como do prático.
Em face dessa discussão, observa-se a inocuidade do Artigo 732-A proposto pelo ARCC. De um lado, conforme entendimento do STF, há preponderância das convenções internacionais sobre as leis internas no campo do transporte internacional. Nesse caso, inconstitucional a disposição. Se, ad argumentandum tantum, estivessem os danos morais excluídos da limitação de responsabilidade posta pelos tratados internacionais por força da restrição do campo de eficácia do Artigo 178 da CF, a norma proposta seria, simplesmente, inócua. Com efeito, não se pode pretender que regra do CC possa limitar a eficácia de norma constitucional.
Aparentemente, portanto, a norma não tem muita utilidade prática. Não obstante, em busca de um sentido sistematicamente consistente, é necessário também verificar a delimitação de seu campo de aplicação. Há, também nesse sentido, alguns problemas, sobretudo na medida em que se expõe a finalidade de derrogar implícita e indiretamente as convenções internacionais em tela.
Em primeiro lugar, não resulta muito claro o objetivo da restrição às transportadoras aéreas. O transporte internacional aquaviário e terrestre de passageiros têm, como o aéreo, diferenças essenciais ou naturais que justifique sua exclusão ab initio? Aparenta-se ter em vista o regime das Convenções de Varsóvia e de Montreal, que tratam da limitação da responsabilidade do transportador. Não fica claro, porém, qual a necessidade ou vantagem de se realizar tal restrição.
Em segundo lugar, é certo que a restrição ao transporte de passageiros faz mais sentido. A ideia poderia ser a de não criar insegurança jurídica para o campo do transporte comercial de mercadorias. Porém, considerando a importância de valores afetivos vinculados a bens entregues para transporte em circunstâncias não profissionais – como o de mobília familiar ou animais de estimação, p. ex. – talvez fizesse sentido não restringir a cobertura, presentes, inegavelmente, danos morais. Aqui a diferença entre o transporte comercial, para o qual o dano moral tem pouco impacto, e o consumerista, onde aspectos imateriais podem ser vultosos, é muito mais importante do que a distinção entre transporte de passageiros e de carga.
Por fim, a limitação subjetiva da norma às “transportadoras aéreas” exclui eventuais responsáveis solidários. Nesse particular, autorizar-se-ia a interpretação de que, a contrario sensu, a limitação da responsabilidade valeria, por exemplo, para as agências que comercializam pacotes ou os serviços aeroportuários. Seria isso mesmo? Ou a razão é que as Convenções de Varsóvia e Montreal tratam apenas as responsabilidades dos transportadores?
A delimitação do âmbito material – subjetivo e objetivo – de aplicabilidade do proposto Artigo 732-A aponta uma direção muito clara: a busca de restrição expressa por via legal da aplicação de normas de tratados internacionais específicos (Convenções de Varsóvia e de Montreal) a despeito de norma constitucional em sentido diverso (CF, Artigo 178). Se é essa a estratégia, não deveria decolar.
Norma constitucional se altera por emenda, não por lei. Convenção que não se pretende cumprir, em aspectos que não foram tempestivamente reservados, deve ser denunciada e revogada, para que cesse sua eficácia internacional e interna, respectivamente. Nesse sentido, com a máxima vênia à ilustre Comissão de Juristas, acredita-se que seria benéfica a exclusão pura e simples do Artigo 732-A do ARCC.